O País passa por grave problema em relação à saúde: falta de estrutura, de médicos, de interesse do governo, dentre outros aspectos igualmente relevantes. Porém, em que pese a judicialização de questões relacionadas a erros médicos e demais situações decorrentes das atividades dos profissionais de saúde represente um ponto positivo para a sociedade, em verdade, muitas das demandas que são ajuizadas infelizmente são fruto de má fé e oportunismo. Conheça esse panorama.
RESUMO: Uma análise detalhada sobre o atual quadro da judicialização da saúde no Brasil. Este trabalho teve seu foco no levantamento de dados que exponham quais os motivos do aumento dos processos contra médicos em nosso país, traduzindo de forma clara e objetiva os problemas que levaram ao atual quadro. Restou evidente que ao contrário do senso comum, o problema reside mais em fatores externos à atuação médica do que internos. Constatou-se que para uma melhora do quadro, é necessária uma total reestruturação do sistema de saúde, passando desde as estruturas governamentais às próprias instituições de ensino, e é claro, também demandando mudanças na atuação dos médicos e também dos pacientes.
Palavras-chave: Judicialização da medicina. Judicialização da saúde. Erro médico. Processos judiciais contra médicos e profissionais da saúde. Medidas preventivas. Estatísticas.
1 INTRODUÇÃO
A chamada Judicialização da Medicina é um fenômeno mundial, que chegou à realidade brasileira e tem agravado severamente a crise vivida na área saúde, principalmente no que se refere aos efeitos sofridos pelos próprios profissionais da saúde. Tal quadro, infelizmente, só tende a se agravar severamente nos próximos anos.
Cumpre ressaltar, muito embora, que a judicialização não é um fenômeno exclusivo da área da saúde, visto que nos últimos anos notamos a judicialização de praticamente todas as relações sociais. Atualmente, vivemos em uma sociedade exageradamente litigante, onde até mesmo pequenos detalhes do dia a dia e aborrecimentos corriqueiros terminam na frente de um Juiz.
Contudo, é notório que as relações que trazem consequências mais gravosas são as ligadas de alguma forma à área da saúde, e sobretudo, relacionadas à atuação profissional dos médicos. Trata-se dos casos em que ocorrem as demandas indenizatórias de alto valor, onde os pacientes buscam a compensação patrimonial em função de eventuais danos decorrentes de erro médico.
Até não muito tempo, os problemas provenientes da atuação do médico eram vistos como fatalidades, ocorrências inevitáveis, mesmo diante da atuação de um profissional urgido do dom da cura. Atualmente, vivemos uma realidade contrária a esta lógica, onde qualquer consequência que não seja o sucesso nos resultados pretendidos pelo profissional da saúde é considerado um erro profissional, provavelmente seguido de uma ação judicial.
Há de se asseverar, contudo, que nem todo mal resultado é sinônimo de erro médico, visto que desde sempre as fatalidades existem em uma profissão tão complexa. Intervir em organismos vivos é um risco imensurável.
Além isso, os médicos são passíveis de erros como qualquer outro profissional, e nem sempre os hospitais oferecem boas condições de trabalho aos médicos, que estão obrigados a atuar. Há uma séria de mazelas que serão aqui abordadas, que outorgam aos médicos uma profissão quase impossível: Praticar uma medicina de primeiro mundo, em um país com recursos escassos e estrutura mínima, como o Brasil.
Mesmo assim, não se pode negar que existe a má prática médica e que os pacientes, ou familiares destes, devem ser justamente reparados quando da ocorrência de um evento danoso. Por uma séria de fatores que serão abordados adiante, o nível dos profissionais é cada vez mais precário, muitas vezes por falhas na própria formação médica, fazendo com que os erros profissionais sejam cada vez mis comuns.
Contudo, sabemos que em grande parte das vezes o eventual dano é decorrente de culpa concorrente, ou até mesmo culpa exclusiva do paciente, os médicos sofrem cada vez mais com os processos, visto que mesmo os pacientes que não atendem aos cuidados do pós operatório tendem a buscar um culpado para os danos decorrentes de sua própria desídia.
Neste estudo, faremos uma análise crítica da crise mundialmente vivida acerca da Judicialização da Medicina, ou Judicialização da Saúde, que afeta à grande parte dos países, mesmo os de primeiro mundo, causada por uma série de problemas e causadora de tantos outros.
Foi em função destas questões de natureza tão complexa que se definiu pelo tema sobre o qual se expõe: A Judicialização da Medicina. Neste estudo, não buscamos encerrar as discussões sobre o tema, mas sim encontrar respostas com embasamento jurídico e doutrinário para este fenômeno, conforme seŕ exposto a seguir, trazendo uma ampla reflexão que nos leve a uma análise mais fidedigna acerca do problema, assim como de suas causas e consequências.
2 OBJETIVOS
A presente pesquisa tem o objetivo de entender, de forma ampla, o fenômeno da “Judicialização da Medicina”. Analisaremos cada um dos aspectos sociais e específicos que levaram a área da saúde aos tribunais de forma tão intensa quanto temos notado. Identificaremos os principais elementos que propiciaram o aumento do número de processos contra médicos e os demais profissionais da área da saúde.
Além disso, abordaremos também as principais causas do aumento de erros profissionais, e também das condenações dos profissionais nos referidos processos.
Analisaremos ainda os efeitos causados pelo fenômeno, e as transformações sociais que a abordagem jurídico-contenciosa da área da saúde tem causado no nosso país.
3 METODOLOGIA
A presente pesquisa foi realizada tomando como base, principalmente, o conteúdo do contencioso jurídico de milhares de processos judiciais que abordam a área da saúde, e principalmente a medicina.
Mediante busca realizada na internet, buscamos artigos e notícias acerca do problema proposto, usando palavras chave como: “judicialização da saúde”, “judicialização da medicina”, “aumento de processos judiciais”, “erro médico”, dentre outras. As pesquisas foram efetuadas tanto em sites de busca para identificação de artigos e notícias, quanto em sites dos diversos tribunais de justiça pelo País, para obtenção dos posicionamentos de cada tribunal estadual, além do STJ.
Foi também pesquisado grande volume bibliográfico para pesquisa, em especial livros de grandes doutrinadores brasileiros, especialistas na área do Direito Médico, tais como Miguel Kfouri Neto, Genival Veloso de França, Sálvio de Figueredo Teixeira e outros, todos publicados nos últimos 5 (cinco) anos para obtenção de dados atualizados. Diante da escassez de material com dados específicos propostos nesta pesquisa, faremos uma análise qualitativa para mais assertividade na pesquisa.
4 O DIREITO E A SAÚDE
Conforme abordado na introdução, a complicada relação entre direito e medicina já tomou os tribunais dos principais países do mundo, mostrando-se um problema de proporções globais. Neste contexto podemos incluir além das demandas indenizatórias, também as demandas contra o SUS, os planos de saúde, e os entes federativos (União, estados e municípios).
Todas estas demandas deságuam em um Poder Judiciário abarrotado de ações, que se mostra ineficaz em dar uma resposta adequada às urgências que a área da saúde demanda. Todos os anos, temos 29 milhões de novos processos distribuídos na justiça, e apenas 17milhões de processos encerrados. Ou seja, ano a ano, 12 milhões de novos processos são “acumulados”.
Atualmente, aproximados 7% dos médicos brasileiros enfrentam algum tipo de processo, seja na área cível, criminal ou administrativa. Comparando-se com a média dos EUA, onde 9% dos médicos possuem processo, notamos que estamos bem próximos da médiada cultura mais litigante do mundo. E dado o acelerado crescimento dos números nacionais, em aproximadamente três anos podemos ultrapassar os EUA em percentual de médicos processados.
Em alguns estados como o RS, já temos uma média de 13,72% dos médicos processados. Nacionalmente temos um elevadíssimo índice de condenação, no importe de 42%. Já em MG, 30,21% dos médicos processados são condenados.
No STJ, tivemos nos últimos 10 anos um aumento de 1600% de processos versando sobre erro médico, sendo que só em 2014 o aumento foi de 154%. Já no CFM, o aumento do número de processos foi de 302% nos últimos 10 anos, com 180% de aumento de condenações.
Em meio a tantas ações, notamos que ao contrário do que aponta o senso comum, o problema principal não se encontra exatamente na quantidade ou aumento de erros médicos por si só, mas sim em uma imensa gama de mazelas com as quais convivemos em nosso país.
Aprofundando na questão, notamos que os médicos não são a única causa do problema em si, mas na verdade, podem até ser mais uma vítima de um sistema retrógrado e falido. Contudo, antes de adentrarmos na análise crítica de quais que vêm a compor efetivamente os maiores problemas da judicialização da saúde, especificamente nos efeitos que vão além do “erro médico” em si, necessário se faz delimitar o que é este principal conceito, para que na sequência possamos tratar dos demais aspectos envolvidos.
4.1 Conceito e natureza do erro médico
Para que possamos adentrar especificamente na análise do fenômeno da Judicialização da Saúde, antes de tudo precisamos delinear o principal e mais óbvio fator que fomenta as ações judiciais desta natureza: O erro médico.
O erro médico é caracterizado pelo dano causado por ação ou omissão do médico ao seu paciente no exercício profissional, resultante de negligência, imperícia ou imprudência. Genival Veloso de França descreve o conceito da seguinte forma (2003, p. 51):
Erro médico é a conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica, capaz de produzir um dano à vida ou à saúde de outrem, caracterizada por imperícia, imprudência ou negligência.
Desta forma, temos que, para que seja identificada culpa por parte do médico ou de qualquer outro profissional da área da saúde, é indispensável que este aja com culpa, consubstanciada na ocorrência de negligência, imprudência ou imperícia.
Podemos conceituar como negligente o médico que não realiza da forma correta os procedimentos necessários à cura do paciente.
Na mesma linha, podemos conceituar como imprudente o médico que não se orienta no respaldo científico nos procedimentos realizados, ou deixa de informar ao paciente riscos e efeitos do tratamento proposto. Por fim, conceituamos o médico como imperito quando este não se ateve à sua especialidade médica, agindo da seara em que é capacitado.
Para melhor entendimento, podemos exemplificar o erro médico como: erro de diagnóstico, erro no exame físico, erro na indicação cirúrgica, dentre vários outros.
4.2 Requisitos ensejadores da responsabilidade de indenizar
Para que haja responsabilidade de indenizar, além da configuração da culpa conforme requisitos acima abordados (negligência, imprudência ou imperícia), necessitamos ainda que haja mais 2 (dois) requisitos básicos: A ocorrência do dano ao paciente, e o nexo de causalidade entre ambos.
Em relação ao dano, este é identificado por qualquer tipo de intercorrência que o paciente venha a enfrentar recorrente do resultado da má prática do profissional.
Já quanto ao nexo de causalidade, é conceituado como a relação necessária entre o dano sofrido pelo paciente, e a culpa do médico.
A Lei 10.406/2002 – O Código Civil – prevê em seu art. 186: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar o direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002).
Já o art. 927 da mesma lei civil dispõe que “aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (Brasil, 2002). Estes artigos dispõem sobre a responsabilidade civil genérica, sendo que o art. 951 prevê a especificação para os profissionais de medicina:
Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplicam-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho (BRASIL, 2002).
O próprio Código de Ética Médica, em seu art. 1º, dispõe que é vedado ao médico:
“causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”.
Desta forma, notamos que a legislação aplicável ao caso é clara em preconizar que havendo erro que cause dano ao paciente, é patente a obrigação do médico em indenizar.
4.2.1 Excludentes da responsabilidade civil
Conforme detalhado no tópico anterior, já sabemos quais os requisitos da responsabilidade de indenizar. Contudo, a própria legislação trata de prever situações onde tal responsabilidade é prontamente afastada, visto que é afastada a própria ilicitude do ato. É o que prevê o art. 393 do Código Civil: “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado” (BRASIL, 2002). Seu parágrafo único aduz ainda: “o caso fortuito ou de força maior verificase no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” (BRASIL, 2002).
Desta forma, por simples raciocínio, não havendo ato ilícito, inexiste responsabilidade de reparação.
Citamos, ainda, como excludentes a culpa exclusiva do paciente, a cláusula de não indenizar e o fato de terceiro.
4.3 Natureza dos processos advindos do erro médico
Havendo a ocorrência de um erro médico, as implicações ao profissional podem ser advindas basicamente de quatro tipos de processo: administrativo, ético profissional, criminal e cível. Para cada processo existe previsão de penalidades diversas, que serão abordadas especificamente mais adiante.
Independente da natureza dos danos sofridos pelo paciente, a própria Constituição Federal garante, em seu art. 5º, inciso X, o direito à indenização: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).
Cada tipo de processo possui o condão de gerar consequências adversas ao médico.
Em resumo, os processos administrativos podem levar o médico de uma censura à exoneração do órgão. Nos processos éticos, as consequências vão de advertência à cassação do exercício da profissão. Em um processo criminal, a penalidade pode ir de multa pecuniária à pena de privação de liberdade (prisão). E por fim, no caso das demandas cíveis, a penalidade geralmente é uma condenação pecuniária.
Independente da natureza do processo, a verdade é que de qualquer forma o médico já sofre um grande revés, só com a existência do processo, mesmo sem a efetiva condenação. Isto porque existindo o processo, em regra o médico já arcará com um alto valor referente aos honorários de um advogado especialista no tipo de demanda, que lhe confira a segurança necessária.
Por outro lado, a simples existência do processo já servirá para tirar o sossego do médico diante das possibilidades de graves problemas em caso de condenação, e ainda, tendo em vista a permanência do processo em cadastros de consulta pública, podendo atentar contrao seu bom nome profissional.
4.4 Modalidades de dano indenizáveis
Em relação às demandas cíveis, principal abordagem do presente trabalho, podemos citar vários tipos de danos indenizáveis, tendo como principais exemplos o dano material, moral, e ainda o dano estético e o existencial.
No caso do dano moral, trata-se de uma ofensa ou lesão aos bens não patrimoniais do paciente, ou seja, aqueles de natureza psicológica. Pode ser exemplificado como uma frustração, humilhação, angústia, etc.
No que tange ao dano estético, podemos conceituar como uma ofensa à integridade ou harmonia estética do paciente. Trata especificamente da beleza estética, sem interferência com o funcionamento do organismo do paciente. Já foi considerado um sub-conteúdo do conceito de dano moral, mas sua independência já restou pacificada pela súmula 387 do STJ.
O dano material ocorre quando, diante do resultado indesejado proveniente do tratamento médico a que foi submetido, o paciente obtém um revés de natureza patrimonial. Pode ser exemplificado através de cirurgias corretivas, novos procedimentos, despesas hospitalares, lucros cessantes e todos os demais dispêndios de natureza patrimonial que o paciente venha a sofrer.
Por fim, o dano existencial consiste na frustração da plena realização do ser humano, que acompanha a vítima por toda a sua existência. Diferente do dano moral que é momentâneo, o dano existencial é uma mácula vitalícia. Podemos citar como exemplo um tratamento inadequado que afete gravemente a visão do paciente.
Havendo o dano, em quaisquer de suas modalidades, para fixação das indenizações pecuniárias o juiz deve basear-se em alguns critérios como a extensão do dano, capacidade patrimonial do réu, e a capacidade patrimonial / nível socioeconômico da vítima. Como a avaliação dos critérios é subjetiva, a fixação das indenizações não é tarefa das mais fáceis para o magistrado.
5 A SAÚDE E A JUSTIÇA
Traçamos em poucas linhas no capítulo anterior um panorama jurídico do conceito de erro médico, apresentando critérios que norteiam a atuação do médico e apontam objetivamente requisitos indispensáveis à qualificação dos erros profissionais. Em todos os casos que se enquadrarem exatamente e incontestavelmente nos requisitos tratados neste capítulo do presente trabalho, poderemos afirmar, categoricamente, que se trata de um caso de erro médico, podendo o médico ser responsabilizado.
Como o nosso foco no presente estudo não se restringe tão somente aos erros efetivamente ocorridos, não vamos nos prender aos mesmos. Vamos muito além. Passaremos a seguir a analisar outras possibilidades em que, assim como nos casos anteriores, pode motivar uma demanda judicial por um paciente ou quem o represente, em face de um médico. Sem, contudo, representar de fato um erro profissional por parte do médico.
Nestes casos, embora a interpretação “automática” seja de que se trata de “mais um processo por erro médico”, veremos que as verdadeiras causas podem estar totalmente alheias à atuação do profissional, tendo o vício ocorrido devido à responsabilidade de outrem, ou até mesmo do próprio paciente.
A verdade é que, por trás dos processos de erro médico, há diversos fatores que merecem o nosso estudo e que contribuem para que o assunto esteja tão em evidência e os números de processos judiciais sejam tão assustadores.
Fatores estes que em sua maioria estão fora da relação médico-paciente, mas que têm sido determinantes em ocasionar a ocorrência de uma ação judicial desmotivada, e até mesmo a condenação do médico sem que haja qualquer erro.
São eles:
- a) Fatores alheios à relação médico-paciente que fomentam o aumento dos processos judiciais;
- b) Fatores alheios à relação médico-paciente que contribuem para o aumento das condenações, sem que haja efetivamente erro profissional.
- c) Fatores que contribuem para o aumento dos erros profissionais, mas que comumente não são trazidas à baila.
5.1 Fatores que fomentam o aumento dos processos judiciais19
Passaremos agora à análise de alguns aspectos que no nosso entendimento, contribuem para o aumento significativo do aumento de processos judiciais e administrativos em face dos médicos. São fatores externos e sociais, ou seja, que não fazem parte da relação médico paciente, mas que têm sido preponderantes no aumento das ações judiciais.
Obviamente, não ignoramos que um dos principais fatores que ocasionam o aumento dos processos judiciais é o próprio aumento dos erros profissionais. Contudo, este aspecto será abordado mais a seguir, com uma explanação dos motivos que levaram ao aumento dos erros.
Em uma análise superficial, todos os aspectos abordados a seguir podem ser relativizados passando quase despercebidos, fazendo com que toda a “carga” proveniente da questão da Judicialização da Medicina jogada nas costas dos médicos, e de seus erros profissionais.
Contudo, veremos que, embora existam também aspectos que apontem para os médicos, a maioria dos pontos que levantamos nesta parte do estudo são externos e alheios à vontade e atuação dos profissionais.
5.1.1 Mudança no perfil do paciente
Com a evolução do nosso ordenamento jurídico, houve uma maior normatização das relações que inevitavelmente conferiu uma maior proteção para os cidadãos, assim como os consumidores. Desde a Constituição Federal de 1988, reforçada pela Lei 8.078/90 – O Código de Defesa do Consumidor, e pela Lei 10.406/2002 – O Código Civil, os direitos dos cidadãos e do consumidor foram severamente reforçados, e ainda mais posteriormente com a Lei 9.099/95 que instituiu os Juizados Especiais colaborando ainda mais para a democratização do acesso ao Poder Judiciário.
Junto a este aspecto, não podemos deixar de ignorar a democratização da informação, que traz a todos através da internet e das redes sociais um mundo de informação até então inacessível.
Toda essa proteção legalmente conferida aliada ao acesso a um mundo de informações até então inacessível acabou transformando sensivelmente o perfil do paciente. A grande verdade ́ que os médicos não possuem mais pacientes, mas sim, “consumidores”. Estes que antes se mostravam leigos em questões de saúde, juridicamente indefesos e fíis à sabedoria inigualável de seu “sacerdote” da saúde, passaram a mostrar o contrário: Um “consumidor”, ciente de seus muitos direitos e poucos deveres, e ainda abastadamente letrados em relação aos tratamentos, procedimentos e medicamentos a serem prescritos.
Este novo paciente por muitas vezes já comparece à consulta com a anamnese pronta, sabendo o que lhe acomete e até mesmo exigindo o tratamento de sua preferência (conclusão à qual chegou em consulta do “Dr. Google”). O índice e a natureza dos questionamentos feitos ao médico são muitas vezes impositivos e desconcertantes, deixando em dúvida quem é o profissional e quem é o paciente.
Fato é que com a mudança de perfil do paciente, o médico tem trabalhado cada vez mais pressionado, tendo em vista a exagerada vigilância por conta deste novo padrão de paciente, e até mesmo por conta das críticas rotineiramente feitas em redes sociais e demais advindos da tecnologia.
5.1.2 Mudança no perfil do médico – Mercantilização da medicina
Embora apontemos como uma das principais causas do fenômeno da Judicialização da Medicina mudança no perfil do paciente é importante ressaltar que o perfil do médico também sofreu uma severa alteração, sendo um dos principais problemas latentes na nossa pesquisa. Praticamente, não existe mais aquela figura antiga e “romântica” do médico de família, que praticava sua profissão quase como um sacerdócio. Sua opinião era incontestável por parte do paciente.
Tal admiração e respeito eram alicerçados em um paciente diferente, conforme o tópico anterior, assim como também em um médico diferente. O médico-sacerdote era de uma época em que havia o tempo adequado para uma consulta completa, para uma anamnese adequada, e para um acompanhamento dedicado e humanizado ao paciente. Além disso, havia o total respeito à figura do médico e à sua opinião profissional, o que infelizmente não ocorre hoje em todos os casos.
Hoje o exercício da medicina está cada vez mais “mercantilizado’, as consultas e anamneses são feitas em poucos minutos, automatizadas com em uma linha de montagem. Não existe mais tempo para olhar nos olhos do paciente e ouvir suas queixas, passando a segurança necessária ao fragilizado enfermo. Após a consulta, o médico já não sabe mais o nome do paciente, e vice-versa.
Obviamente não se trata de um problema existente somente no caso dos médicos, mas de todos os profissionais. É uma mazela trazida pela modernidade, onde cada vez mais tempo é dinheiro, principalmente para quem trabalha para os planos de saúde e cooperativas médicas, recebendo um valor mínimo por consulta e dependendo de milhares delas para pagamento das contas no final do mês.
O dinamismo imposto pela mercantilização da medicina não foi bem aceito pelos pacientes, que se sentem carentes e fragilizados, aguardando horas por uma consulta que dura poucos minutos, saindo da mesmas frustradas com a desumanização e automatização do atendimento médico. Também há um grande prejuízo para o lado dos médicos, principalmente nos casos em que há envolvido um plano de saúde, que finge que paga e o médico finge que atende.
Este atendimento rápido e desumanizado acaba por corroer a relação médico-paciente, agravando a insatisfação dos pacientes em relação às suas enfermidades e seus efeitos, e instintivamente sua frustração é direcionada àquele que deveria resolver seu problema, mas aparentemente não o faz por desinteresse.
5.1.3 Concessão indiscriminada de Assistência Judiciária Gratuita
Nosso ordenamento jurídico foi “equipado” com um virtuoso mecanismo para se evitar as “aventuras jurídicas” em busca de indenizações indevidas ou pedidos em valores exorbitantes sob a ótica dos fatos apresentados no processo. Vejamos o que determina o art. 85 da lei 13.105/2015, o Novo Código de Processo Civil:
Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.
- 1º São devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente.
- 2º Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos:
I – o grau de zelo do profissional;
II – o lugar de prestação do serviço;
III – a natureza e a importância da causa;
IV – o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço
(BRASI, 2015).
Constata-se que a parte autora está sempre com o risco de uma condenação de até 20% do valor da causa em favor do advogado da contraparte em caso de insucesso da demanda indenizatória, fora os demais custos judiciais. Pelo menos nos casos em que esta postula no processo sem a concessão da “justiça gratuita”.
A Lei 1.060/1950 dispõe sobre a concessão de Assistência Judiciária Gratuita, e prevê que mediante requerimento da parte a concessão dos benefícios legais. Vejamos:
Art. 4º A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.
- 1º Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos da lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais (BRASIL,1950).
Com vistas a tal disposição legal, é comum nas ações de indenização que a parte autora se declare “pobre”, não com o objetivo de se ver livre das custas iniciais, mas sim, dos ônus da sucumbência em caso de insucesso na demanda.
Obviamente a lei não foi redigida com esta finalidade, mas sim com a de possibilitar às camadas menos favorecidas da sociedade o pleno acesso do Poder Judiciário. Contudo, diante da concessão indiscriminada do benefício mediante simples pedido e declaração aleitem sido usada na mais absoluta má fé, possibilitando pedidos cada vez mais absurdos frente aos danos alegados nos autos dos processos.
Em especial nas demandas que tratam da medicina, o efeito de tal manobra tem sido avassalador, pois pedidos que tratam de erro médico dificilmente se mantém abaixo da casa dos 100 mil reais, e comumente tem ultrapassado os milhões por conta de danos mínimos, e muitas vezes inexistentes.
Caso os benefícios da assistência judiciária gratuita não fossem concedidos indevidamente com tamanha frequência, certamente os autores das ações não seriam tão ávidos em seus pedidos. Muitas vezes, sequer ajuizariam ações sem fundamento, visto que haveria um ônus final diante do insucesso.
Contudo, a realidade que vivemos é uma onde os juízes dificilmente solicitam aos autores das ações a comprovação de sua situação de pobreza. Em outros casos, muito embora haja a devida impugnação da medida por parte do réu, existe uma grande dificuldade em se comprovar que o autor possui de fato boas condições financeiras. Diante desta realidade, temos cada vez mais ações sem fundamento, com pedidos milionários que tiram o sono de qualquer profissional.
5.1.4 Criação de associações de vítimas de erros médicos / Especialização de advogados na área
Em meio a uma conjuntura econômica cada vez mais complicada vivida por todos no nosso País, trazemos à baila um dado assustador, que é o crescimento do número de escolas de Direito.
No ano de 1995, tínhamos 165 cursos de Direito no Brasil. Em 2001, já eram 505 cursos. No último levantamento realizado pela OAB em 2015, o número de cursos já ultrapassava o de 1.308 cursos. Para que se tenha uma exata ideia desta dimensão, ultrapassamos sozinhos o número de faculdades de Direito de todos os demais países do mundo juntos, que é por volta de 1.100.
Com um mercado tão disputado entre os novos advogados que todos os anos são inseridos em um mercado de trabalho saturadíssimo, cabe a estes buscarem uma colocação dentro do mercado. E também neste aspecto a Judicialização da Medicina contribuiu para um novo fenômeno, com o surgimento dos “advogados de porta de clínicas ou hospitais”, que trabalham buscando insatisfações mínimas e as transformando em processos, incitando ações judiciais contra médicos de olhos nas gordas cifras dos pedidos milionários e honorários idem, conforme tópico anterior.
Considerando que as normas impostas pela OAB impedem a propaganda por parte dos advogados, muitos fundaram “associações de vítimas de erros médicos” funcionando estas somente como uma “máscara” para a prospecção de clientes sem que haja problemas com a OAB.
Assim, temos atualmente uma infinidade de advogados que, embora não sejam especialistas em Direito da Saúde, são oportunistas, especialistas em “tirar sangue de médicos” e atuam como grandes incitadores de ações judiciais, fazendo com que uma infinidade de casos que dificilmente seriam judicialmente tratados, cheguem ao Poder Judiciário e alimentem os números que tratamos no presente estudo.
5.1.5 Falta de investimento na saúde
A vida, a integridade física e a saúde são prerrogativas constitucionalmente garantidas aos cidadãos, sendo, portanto, sua defesa dever do próprio Estado do Direito. Cabe ao Estado garantir a cada um dos cidadãos tais direitos: Contudo, não é o que temos visto desde sempre no Brasil.
Conforme levantamento realizado pelo CFM, no ano de 2013 (ano que antecedeu a Copa do Mundo de Futebol da FIFA realizada no Brasil), dos mais de 47 bilhões de reais gastos com investimentos pelo Governo Federal, somente 8,2% foram destinados à Saúde,ficando atrás dos gastos com as obras em estádios, mobilidade urbana, rodovias e até armamento militar como aviões de caça e submarinos nucleares.
Do total de R$ 9,4 bilhões disponíveis para investimentos em unidades de saúde em 2013, foram desembolsados somente R$ 3,9 bilhões, bem abaixo dos investimentos dos R$ 11 bilhões investidos em Transportes, R$ 8,8 bilhões investidos em Defesa, R$ 7,6 bilhões investidos em Educação e R$ 4,4 bilhões investidos em Integração Nacional.
Vivemos em uma realidade onde se gastam bilhões todos os anos no combate a doenças, quando o correto seria o investimento na prevenção das mesmas. Trata-se de uma política constantemente deficitária, pois é fato incontroverso que o investimento em combate a doenças e epidemias é muito mais caro do que o investimento em prevenção.
Podemos citar como exemplo o próprio combate à dengue, epidemia que assola o país há quase duas décadas, e ano após ano o país gasta mais no tratamento dos doentes do que na prevenção.
No ano de 2015, o país gastou um total de R$ 2,7 bilhões com o tratamento da doença, e somente R$ 1,2 bilhão com a prevenção. Mais de 60% dos hospitais públicos estão sempre superlotados, e 15% dos municípios brasileiros não possuem sequer um único profissional de saúde. A média nacional de 1,8 médicos para cada 1.000 habitantes perde para grande parte dos países vizinhos, como a Argentina que registra 3,2 e o México que conta com 2.
Até mesmo a Venezuela de Hugo Chávez está à frente do Brasil, com 1,9. Se compararmos com países desenvolvidos, notamos um abismo ainda maior. A Alemanha, por exemplo, possui 3,6 médicos para cada 1.000 habitantes. Ou seja, o Brasil tem cerca de metade dos médicos que uma nação civilizada necessita.
Obviamente, tais fatores contribuem para uma grave piora do quadro geral da saúde no Brasil, com um SUS abrangente, mas falido, abandonando à própria sorte milhões de pacientes e expondo os médicos e demais profissionais da área da saúde a situações inadequadas, que por muitas vezes se findam de forma fatal.
Neste cenário, observamos que todos passam a ser vítimas deste nefasto sistema, em especial, os médicos e os pacientes.
5.1.6 Falhas estruturais nos nosocômios
Seguindo a lógica defendida no tópico anterior que trata da falta de investimentos na saúde, temos como consequência lógica o sucateamento da nossa estrutura de atendimento.
Faltam leitos, faltam medicamentos, faltam equipamentos, faltam insumos hospitalares, falta equipe, faltam condições de higiene, faltam equipamentos adequados (geralmente são obsoletos ou sem manutenção). A estrutura física na maioria das vezes é inadequada e os recursos de tecnologia de informação são insuficientes.
Tais problemas já foram às causas para o fechamento de inúmeros hospitais por todo o país, como, por exemplo, o pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia, um dos principais institutos de saúde de São Paulo. A situação é de precariedade e caos vivido na maioria dos hospitais públicos por todo o País.
A precariedade da estrutura disponibilizada aos profissionais da área da saúde não lhe conferem condições de trabalho adequadas, causando um número acentuado de problemas de atendimento, sendo por muitas vezes o médico responsabilizado por um atendimento (ou a falta dele) onde não lhe foram outorgadas condições mínimas de trabalho.
Comuns são os casos em que os médicos tem que “se virar” com os recursos que tem para salvar a vida dos pacientes, conforme vemos constantemente nos noticiários, com destaque aos recentes casos de destaque de uma cirurgia cardíaca realizada com a iluminação de um telefone celular, e de um recém nascido que foi entubado com um respirador improvisado com garrafas pet.
São inúmeros os casos onde em função da precariedade de recursos estruturais, os médicos têm que usar o que têm e tomar decisões em uma fração de segundo com o intuito de salvar a vida do paciente, e nem sempre obtém o sucesso. E muitas vezes, essa conta é paga pelo médico.
Conforme anteriormente sustentamos, fornecemos aos operadores da saúde uma estrutura de terceiro mundo, para posteriormente lhes impor uma cobrança de primeiro mundo.
5.1.7 Culpa concorrente / Culpa exclusiva do paciente
Conforme já asseverado, a relação médico-paciente possui peculiaridades únicas, sendo uma das raras formas de prestação de serviços onde a qualidade final do mesmo depende tanto do tomador de serviços (no caso, o paciente) quando do fornecedor (o médico). Em outras palavras, o médico faz a cirurgia, mas e o paciente quem a leva para a casa, tendo consigo uma séria de orientações pós operatórias ou de continuidade do tratamento, que na maioria das vezes são ignoradas ao menor sinal de melhora dos sintomas.
A culpa exclusiva do paciente está presente nos casos em que o dano ocorrido a este adveio de sua própria ação ou omissão, sem qualquer contribuição por parte da conduta do médico. É uma ocorrência bastante comum, onde o paciente não atende à conduta prescrita pelo médico por indisciplina ou simplesmente por já sentir-se totalmente livre da enfermidade. Pode ser configurada através do abandono do tratamento medicamentoso, realização de esforço físico, exposição ao sol, etc. Nestes casos, o paciente é vítima de si próprio.
No caso da culpa concorrente, tem-se presente a responsabilidade mútua pelo dano ocorrido ao paciente, ou seja, tanto a conduta do médico quanto a conduta do paciente colaboraram para a existência do dano. Nestes casos, caso haja responsabilidade de indenizar, o juiz deverá encontrar uma proporção justa para cada um dos responsáveis. Não existe uma disposição legal acerca da culpa exclusiva da vítima, até porque esta elimina o nexo causal e afasta prontamente a responsabilidade civil do médico.
Já em relação à culpa concorrente, o art. 945 estabelece: “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano” (BRASIL, 2002).
Ocorre que por muitas vezes, quando do aparecimento dos problemas provenientes da desídia do próprio paciente (havendo ou não concorrência com o médico), este imputa toda a responsabilidade a eventual mau serviço prestado pelo médico. Neste caso, caberá a este provar que o verdadeiro culpado foi o paciente (ou houve concorrência deste) ao não seguir as orientações e prescrições. Contudo, como o médico faz esta prova? É missão das mais árduas, muitas vezes impossível, conforme veremos mais a seguir.
5.1.8 Fato de Terceiro
São comuns os casos em que o tratamento médico não é totalmente conduzido unicamente pelas mãos deste, principalmente em casos de cirurgias, onde há toda uma equipe por trás do profissional e por este conduzida.
O fato de terceiro se configura nos casos em que um terceiro que não seja o médico provoca o dano ao paciente. Neste caso, nota-se que o autor do dano foi pessoal totalmente estranha à relação médico-paciente. Podemos exemplificar através dos recentes casos de enfermeiros e técnicos em enfermagem que ministraram glicerina e vaselina pela via endovenosa no lugar de soro, com consequências fatais para os pacientes. Nestes casos é configurado fato de terceiro, que causou o dano ao paciente independente da conduta do médico.
Havendo erro profissional por parte de qualquer um dos membros da equipe médica, em que pese a análise técnica apontar para a responsabilidade profissional que cometeu o ato, geralmente os processos judiciais são sempre direcionados ao médico, nunca ao enfermeiro, instrumentalista, ajudante, etc. Isto se dá por conta da concausalidade (que deverá ser afastada pelo médico), além de que é flagrante a existência do conceito social de que “o médico rico”, reunindo condições de pagamento de uma indenização mais valorosa ao paciente.
5.1.9 Má fé do paciente / Indústria do dano moral
Em que pese à existência de todos os fatores já abordados anteriormente como causas do aumento dos processos judiciais versando sobre erro médico, podemos apontar como o principal deles a chamada “indústria do dano moral”.
O dano moral em si é previsto na própria Constituição Federal, nos incisos V e X do art. 5º:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
[…]
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[…] (BRASIL, 1988).
Em linhas gerais, o dano moral ocorre quando a pessoa física ou jurídica tem abalado um dos direitos da personalidade, quais sejam a honra, a intimidade, a privacidade, a integridade física, etc. Porém, como não há uma definição em lei do conceito de dano moral,muitos se aproveitam da situação para pleitear indenização por qualquer motivo, enquadrando-se na “Indústria do Dano Moral”.
Tal nome se dá devido à verdadeira avalanche de ações ajuizadas sem que de fato exista um verdadeiro dano moral que seja capaz de gerar direito à indenização. Os motivos que ensejam essas ações denotam a evidente intenção de que o autor da ação tem de “ganhar dinheiro fácil”, o que, no meio jurídico, ́ chamado de enriquecimento sem causa.
A facilidade em postular em juízo sem dispêndio financeiro, sobretudo no âmbito dos Juizados Especiais, nos quais em determinadas circunstâncias sequer é necessário o patrocínio processual por advogado, além da impunidade pelas ações infundadas em função da concessão indiscriminada de assistência judiciária gratuita acabam por incentivar o crescente número de ações.
A cada dia, aumenta o número de profissionais processados por pacientes que de fato não possuem qualquer insatisfação para com o resultado do tratamento e seus resultados, ou estando de fato insatisfeitos, sabem que tal sentimento não se ampara em dano causado pelo médico. Contudo, ainda assim pleiteiam junto ao Poder Judiciário uma indenização, muitas vezes milionária, por mera conveniência e oportunismo.
Cumpre salientar que o abuso da máquina do Judiciário vem gerando excesso de processos e a consequente demora na prestação jurisdicional, o que prejudica aqueles que efetivamente têm direitos devidos a serem apreciados, além dos gastos que representam para o Estado este excesso de processos e o desgaste psicológico dos envolvidos nos milhares de lides, que às vezes morrem sem ver seu direto realizado.
É fato que atualmente, todos estamos sujeitos a ser vítima da indústria do dano moral. Contudo, dificilmente em outras áreas as ações alcançam os valores exorbitantes das ações que tratam do “erro médico”, pois a atuação do profissional da medicina trata do que a pessoa tem de mais valioso, sua vida e sua saúde.
5.1.10 Fatalidades (caso fortuito / força maior)
Fatalidades também eximem totalmente o médico da responsabilidade de indenizar, visto que inexiste nos casos de força maior (caracterizado pela inevitabilidade) e caso fortuito (caracterizado pela imprevisibilidade), ação ou omissão por parte do profissional que tenha causado o dano.
O próprio Código Civil se preza a descrever o caso da seguinte forma:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir (BRASIL, 2002).
Desta forma, sempre que ocorrerem condições que se enquadrem nos casos acima citados, será excluída a responsabilidade de indenizar. Obviamente, cada caso deverá ser analisado individualmente, sendo devidamente observada cada particularidade que exista.
Muito embora as fatalidades sejam excludentes da responsabilidade de indenizar dos médicos, não são incomuns os casos onde tais fatos são judicialmente reputados aos profissionais por conta das dificuldades existentes se fazer prova em juízo, do ocorrido em uma sala de cirurgia anos atrás.
Problema que, cumulado às demais questões abordadas no presente estudo, deixam claro que a excludente pode não ser aplicada em todos os casos, causando a injusta condenação dos médicos.
É claro que havendo uma fatalidade imprevisível durante um procedimento complexo, o risco de dano ao paciente é patente.
Neste momento, a conduta possível e desejável do médico pode variar de uma para outra em uma fração de segundos, potencializando as chances de um deslize, e consequentemente, um dano fatal ao paciente. Contudo, tal situação é mais argumentativa em casos de incriminação indevida dos médicos do que realmente fática, motivo pelo qual classificamos tais fatalidades como mais uma causa de aumento de processos.
5.2 Fatores que contribuem para o aumento das condenações
Feitos estes levantamentos fáticos acerca de alguns pontos que fomentadores do aumento dos processos judiciais contra médicos, passamos agora à análise de um dos principais complicadores da relação entre Direito e Medicina.
A relação médico-paciente historicamente é controversa, dada a especificidade da atuação do profissional e a importância do bem tutelado, a saúde e a vida do paciente. É fato que existem médicos acusados indevidamente, assim como graves erros cometidos pelos profissionais. E para diferenciar uns casos de outros, necessário seria um Poder Judiciário competente para julgar causas tão específicas, e livre dos graves vícios que veremos a seguir.
Contudo, a realidade que vivemos é bem diferente do ideal. Há uma série de fatores que prejudicam ou viciam o julgamento dos casos, trazendo um elevado índice de condenações de médicos em casos em que faticamente, não houve qualquer erro profissional.
Veremos a seguir alguns destes fatores. Não faremos uma análise satisfativa do tema, trataremos somente dos aspectos mais graves que viciam grande parte dos processos e causam a maior parte dos julgamentos equivocados, na nossa visão.5.2.1 Inexistência de varas específicas de Direito Médico
Temos no nosso Poder Judiciário uma subdivisão de varas cíveis em diversas especialidades, para que haja a especialização do juiz titular de uma vara em um assunto determinado e para maior agilidade na resolução dos processos de mesma natureza, favorecendo decisões cada vez mais acertadas por parte dos magistrados.
Podemos citar como exemplo o TJMG, que conta com as varas de família, varas de fazenda pública e autarquias, varas de infância e juventude, varas de meio ambiente e urbanismo, varas do idoso, varas “Maria da Penha”, varas de execuções de títulos extrajudiciais, dentre outras.
Contudo, não temos em qualquer das regiões do nosso País sequer uma vara de Direito Médico. Considerando a finalidade mais acima descrita que levou o Poder Judiciário a criar tais subdivisões, qual área poderia abranger um tema mais específico e de difícil julgamento por parte dos juízes do que o Direito Médico?
Obviamente, não seria desejável que cada Tribunal de Justiça contasse com varas específicas para cada uma das atividades que existem, e o mesmo se aplica ao Direito Médico. Contudo, muito embora existam regiões onde o volume de ações não justifique tal medida, existem outras que a demanda considerável. Contudo, nada se fala, pelo menos até o presente momento, acerca da criação das varas de Direito Médico.
Assim, não havendo sequer sinal de que teremos em um futuro próximo juízes mais qualificados na área da saúde, resta somente apostar todas as fichas nas perícias médicas, que infelizmente, não são a solução esperada para tal vício.
5.2.2 Deficiência nas perícias médicas
Nos termos do caput do art. 156 do novo Código de Processo Civil, o juiz será assistido (note-se o comando afirmativo “será” e não “poderá”) por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico.
Conforme o § 1º do artigo 156 do novo CPC, “os peritos serão nomeados entre os profissionais legalmente habilitados e os órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado”.
A inovação do NCPC pode de fato trazer algum benefício, somente pelo fato de “obrigar” os juízes a lançarem mão dos peritos, e não mais decidir os casos em que usarão tal beneficia, como era o caso da legislação antiga.
Em resumo, o novo CPC mostra uma evolução no assunto e prestigia o perito, exige maior transparência para a sua indicação e reforça a necessidade do conhecimento técnico especializado, tudo em consonância com os princípios da moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência, lembrando que o processo judicial, e não mais o juiz, passa a ser o verdadeiro destinatário das provas.
Contudo, o problema existente acerca da qualidade das perícias provavelmente sobreviverá à nova lei, visto que mesmo a antiga já exigia a especialização dos peritos no assunto em debate, o que nem sempre é cumprido na prática dos tribunais. No dia a dia dos tribunais, vemos que na maioria das vezes faltam peritos qualificamos para análise técnica dos casos.
Isto se dá principalmente pelo fato de os autores das ações quase sempre postularem com os benefícios da assistência judiciaria gratuita, motivo pelo qual o pagamento dos honorários fica por conta do estado. Sendo responsabilidade do estado, o valor pago pela perícia e a forma de pagamento, absolutamente, não atendem à pretensão da maioria dos profissionais qualificados para atuação técnica condizente com o necessário.
Desta forma, a realidade com a qual convivemos é uma onde, não havendo peritos especialistas na área médica abordada no processo e que aceitem o valor e a forma de pagamento propostos pelo poder público, o juiz acaba nomeando um profissional inadequado, por uma série de motivos (desatualizado, sem expertise na área médica e especialidade demandada para análise do caso, etc.). Existem casos, por exemplo, de nomeação de um médico pediatra para perícia em um caso de neurocirurgia, ou de um dermatologista para análise de uma cirurgia de transplante de órgãos.
Este quadro prejudica enormemente a posição do médico demandado na ação, dada a importância da perícia no resultado final do processo. É esta que possui o condão de levar ao juiz, leigo no assunto, informações qualificadas e “traduzidas” para entendimento do caso, para que mais posteriormente, tenha segurança para prolação da sentença condenatória ou de absolvição.
Assim, temos que a deficiência nas perícias médicas é uma grande mácula existente no nosso Poder Judiciário, que pode decidir o rumo de um processo de forma prejudicial aos direitos das partes, sobretudo dos médicos.
5.2.3 Juízes “pacientes” / Parcialidade nos julgamentos
Conforme exposto nos tópicos anteriores, existem uma séria de problemas no Poder Judiciário que prejudicam o julgamento das causas, quase sempre em prejuízo dos réus. E a posição adotada por parte dos magistrados se mostra mais um grande problema, ao passo que o nível de parcialidade notado em parte dos julgamentos tem comprometido gravemente o resultado das demandas.
Infelizmente, são comuns os casos em que os magistrados questionam o resultado de uma perícia “favorável” ao médico, alegando nas entrelinhas a presença da chamada “máfia de branco” onde o perito, médico que ́, estaria sendo corporativista e favorecendo o médico presente no pólo passivo da demanda.
Ainda, temos que considerar que existe uma tendência natural para que os juízes se inclinem para o lado do paciente, visto que todos os juízes são também pacientes, e não se sabe de ao menos um juiz que seja médico. Desta forma, é comum que o juiz identifique ocaso em análise fazendo, ainda que inconscientemente, uma analogia a uma situação vivida por si próprio ou por um familiar, um amigo, um vizinho ou qualquer outra pessoal de seu convívio social. É claro que pode ocorrer o mesmo em sentido contrário, caso o magistrado pertença a uma família de médicos, mas é óbvio que seria um caso de menor possibilidade do que o contrário.
Outra tendência natural é que o magistrado se posicione de forma protetiva à parte mais frágil da relação processual, no caso, o paciente. Desta forma, temos que a parcialidade no julgamento das demandas, por qualquer um dos motivos acima descritos, é um fator complicador do julgamento das causas que tratam da relação médico-paciente.
5.2.4 Aplicação da Lei 8.078/90 / Inversão do ônus da prova
Atualmente, é importante que se faça um grande alerta aos médicos e demais profissionais da área da saúde: Não se tem mais um paciente do outro lado da relação, mas sim um consumidor, ciente de cada um de seus direitos conferidos pela Lei Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor.
Mesmo considerando que o Código de Ética Médica preconize em seu capítulo I, inciso XX que “a natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo”, tal realidade não tem sido considerada nos tribunais.
Assim, o advindo da legislação consumerista e a sua aplicação na relação médico paciente (ainda que equivocada sob certa ótica) têm causado um efeito devastador nos processos, não simplesmente por considerar o médico um fornecedor de serviços, mas sim por trazer a este tipo de demanda preceitos e instrumentos idealizados para se equilibrar uma relação de desigualdade existente em muitos casos entre um frágil consumidor e uma grande potência econômica.
A aplicação de tais preceitos e instrumentos pode até se sustentar em muitos casos, mas infelizmente não se mostra justa em tantos outros, principalmente no que se refere à inversão do ônus da prova, prevista no art.6, inciso VIII, da Lei 8.078/90 transcrito abaixo:
Art. 6°. São direitos básicos do consumidor:
[…]
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências .
[…] (BRASIL, 1990).
Ocorre que a concessão indiscriminada de tal benefício tem agido não no sentido de equilibrar a relação, mas de impossibilitar a defesa do réu, em muitos casos.
O advindo do Novo Código Civil pode relativizar o problema, visto que o art. 1º do artigo 373 traz uma regra para a distribuição do ônus da prova:
- 1º – Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído (BRASIL, 2015).
Devemos ressaltar que o artigo 373, parágrafo 2º, veta a distribuição dinâmica do ônus probatório nos casos em que a obtenção das provas seja impossível ou excessivamente difícil; tais provas são conhecidas como “provas diabólicas”:
- 2º – A decisão prevista no § 1º deste artigo não poderá gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil (BRASIL, 2015).
Contudo, estamos claramente diante de um conflito de normas, que será decidido pelo juiz de acordo com o seu entendimento, que nem sempre se mostrará justa e equânime.
5.2.5 Exigência de obrigação de resultado e não de meios
A obrigação de meios é aquela em que o profissional não se obriga a um objetivo específico e determinado, sendo imposto pelo contrato apenas a realização de certa atividade, 34 rumo a um fim, mas sem o compromisso de atingi-lo, sem assegurar um resultado que pode estar alheio ou além do alcance de seus esforços. Obviamente, o profissional é obrigado a empregar toda a sua expertise, todo o seu conhecimento acumulado para se alcançar o fim. Nestes casos, incumbe ao credor provar a culpa do devedor.
Já no caso da obrigação de resultado, existe o compromisso do contratado com um resultado específico a ser alcançado. O contratado compromete-se a atingir objetivo determinado, de forma que quando o fim almejado não é alcançado ou é alcançado de forma parcial, tem-se a inexecução da obrigação. Nas obrigações de resultado há a presunção de culpa, com inversão do ônus da prova, cabendo ao acusado provar a improcedência do que lhe é indevidamente imputado.
Existe uma corrente jurisprudencial que cresce a cada dia no sentido de que existe obrigação de resultado para o cirurgião plástico na cirurgia meramente embelezadora. Embasa-se no fato de que o paciente que procura um cirurgião plástico não se encontra doente, mas apenas deseja melhorar um aspecto estético, interessando-lhe tão somente o resultado a ser alcançado.
Tal entendimento faz todo sentido, pois ninguém em sã consciência se submete aos riscos de uma cirurgia, nem se dispõe a fazer elevados gastos para ficar com a aparência pior do que antes, ou com a mesma aparência. Contudo, cumpre ressaltar que a análise do resultado pode ser subjetiva.
Ou seja, o paciente pode receber exatamente o que buscou através da cirurgia plástica, mas por motivos de foro íntimo não ficar satisfeito com o resultado final, o que em nada desqualifica o trabalho do cirurgião. E é nestes casos que reside o problema, pois a mesma análise subjetiva feita pelo paciente pode ser feita pelo juiz, em prejuízo do médico.
O problema se mostra ainda mais grave, pois tem sido comum ver em processos que tratam de outros tipos de cirurgias plásticas, como as reparadoras, e até mesmo de tratamentos e cirurgias de outras especialidades médicas, a exigência do resultado. Existem precedentes de exigência de resultado até mesmo em casos de atendimentos de urgência, a politraumatizados, o que se mostra uma total inversão de valores.
5.2.6 Contratação de seguros de responsabilidade civil
Outro aspecto que tem prejudicado o julgamento de muitas ações é a contratação, por parte dos médicos, de apólices de seguros de responsabilidade civil profissional. A modalidade não é amplamente comercializada no Brasil, atendendo a menos de 10% dos médicos em atividade.
O insucesso da modalidade se dá em parte por conta da aversão das principais entidades médicas à contratação. Praticamente todos os sindicatos, conselhos e associações de especialidades recomendam veemente aos médicos pela não contratação. Vários são os argumentos apresentados com a finalidade de se sustentar a posição supramencionada. Dentre eles, destacamos o receio de que com a proteção do seguro os médicos se tornem mais negligentes, e o temor de que a existência do seguro incentive o aumento das ações judiciais.
Contudo, tais fatores não se sustentam. Lado outro, existem argumentos que de fato fazem total sentido na recomendação de não contratar cobertura securitária. Ocorre que a maioria das apólices preveem que em caso de ação judicial, o médico é obrigado a proceder com a denunciação à lide, incluindo no polo passivo da demanda o médico, para responder à ação a se defender junto ao profissional.
Tal medida despersonifica a relação processual, incluindo no polo passivo uma grande seguradora ou banco, muitas vezes de atuação multinacional, além de dar um parâmetro objetivo para arbitramento de eventual condenação, qual seja, o valor da cobertura securitária. Há de ser considerado ainda que havendo condenação em danos morais, é possível (e provável) que o juiz condene o médico em valor superior ao da apólice, com a finalidade de se atender ao caráter pedagógico da indenização. Isto ao longo do tempo pode “inflacionar” consideravelmente o patamar das condenações.
Desta forma, temos que a contratação de seguros de responsabilidade civil profissional pode trazer muitos benefícios ao médico, sobretudo de não ver-se tolhido de seus bens em caso de condenação. Contudo, pode também lhe trazer enormes prejuízos, pelos motivos acima descritos.
5.2.7 Despreparo jurídico dos médicos / Falhas no preventivo jurídico
Um aspecto que não pode deixar de ser comentado é o total despreparo da maioria dos médicos em relação às medidas preventivas jurídicos minimamente necessárias para uma atuação segura, diante de tantos problemas existentes no mercado. É fato que na grade curricular de 100% dos cursos de medicina do nosso País, inexiste qualquer ensinamento jurídico para que o estudante se prepare para uma atuação juridicamente segura. Soma-se a este fato a total dedicação dos estudantes e médicos aos constantes estudos e aprimoramentos que a atuação médica demanda, tomando todo o tempo disponível do profissional e fazendo com que o mesmo seja especialista na sua área, mas leigo em tantas outras tão importantes como a jurídica.
Diante desta realidade, são comuns os casos em que os profissionais são processados e até mesmo condenados sem que tenham de fato incorrido em erro, tendo simplesmente criado condições que permitissem o questionamento de sua atuação, ou a dúvida em relação à sua responsabilidade pela insatisfação do paciente.
Conforme restou comprovado nos tópicos anteriores, havendo um processo judicial as chances de que o médico seja condenado sem que tenha incorrido em erro são grandes. Somente um trabalho preventivo de qualidade possui o condão de relativizar este risco. Desta forma, imperativa se faz a contratação por parte do médico de uma banca jurídica especializada e experiente na área da saúde, para que possa acompanhar e orientar sua atuação, diminuindo ao mínimo seu risco jurídico.
5.3 Fatores que contribuem para o aumento dos erros profissionais
Feitas todas estas considerações acerca dos fatores alheios à relação médico-paciente que fomentam o aumento dos processos judiciais, assim como dos fatores alheios à relação médico-paciente que contribuem para o aumento das condenações sem que haja efetivamente erro profissional, imperativo se faz tratarmos de um tema ainda mais delicado: Os fatores que contribuem para o aumento dos erros profissionais.
É fato que somado a todos os problemas estruturais com os quais convivemos na atuação da medicina, ocorreu também um assustador aumento dos erros profissionais. Contudo, pouco se fala acerca dos motivos que levaram ao aumento dos erros por parte dos médicos, motivo pelo qual os trazemos à baila.
5.3.1 Formação médica inadequada
No Brasil, até março de 2016, havia 268 escolas médicas em atividade. São 146 particulares, 75 federais, 32 estaduais, 13 municipais e 2 públicas. De 2000 a 2015, foram criadas 142 escolas médicas: 51 públicas e 91 particulares. A primeira faculdade de Medicina do Brasil foi a da UFBA, fundada 1808, mais de dois séculos atrás. Só nos últimos cinco anos, foram abertas 81 escolas médicas. Quase a metade do total de faculdades de medicina criadas em mais de 200 anos. O governo federal diz que a abertura de novas faculdades é necessária porque faltam médicos no Brasil.
Contudo, o que poderia ser motivo de orgulho nacional virou vergonha e preocupação, além de sério risco para a saúde das pessoas.
O Brasil se encontra hoje como os EUA estavam cem anos atrás, com excesso de escolas e nenhum controle sobre elas. Ressaltamos que o Brasil é um dos poucos países do mundo onde se abrem escolas com a única finalidade de obter lucro, como qualquer outro negócio.
Dados inéditos do Conselho Federal de Medicina mostram que nenhuma faculdade de medicina do país tirou a nota máxima na última avaliação do Inep, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Numa escala de um a cinco, mais da metade teve nota menor ou igual a três.
O fato é que na grande maioria dos cursos não há uma estrutura mínima, mesmo docente. As faculdades de medicina se transformaram em um grande negócio, onde são cobradas mensalidades de até R$ 11.000,00 (onde mil reais) para um ensino péssimo, formando médicos cada vez menos qualificados.
Obviamente, tal quadro reflete gravemente na qualidade da nossa saúde, pois o resultado desta diabólica equação é o seguinte: Poucos médicos, de qualidade duvidosa e trabalhando em condições precárias. O resultado não poderia ser diverso do vemos no dia a dia.
5.3.2 Falta de vagas para residência
A residência é o período de especialização do médico. Depois que ele conclui os 6 anos de faculdade já pode atuar como clínico geral, mas se preferir atuar numa área específica tem que estudar por pelo menos mais 3 anos.
Condições precárias de estágio e falta de vagas para residência são apenas mais uma das deficiências da formação médica brasileira. Contudo, pode ser uma das mais sérias, pois o estudante de medicina passa um longo período de 6 (seis) anos estudando a teoria, para depois ser lançado no mercado de trabalho totalmente despreparado.
Atualmente, formamos cerca de 10 mil médicos anualmente no Brasil. E a oferta de vagas de residência não chega nem a sete mil, ou seja, três mil médicos ficam sem a especialização. Uma vez no mercado de trabalho e totalmente desassistido de orientação profissional experiente, o médico precisa vencer todas as demais adversidades já comentadas (sobretudo a falta de estrutura e recursos, a superlotação e a falta de experiência) e arriscar-se ainda mais do que os médicos já experientes no mercado de trabalho, o que potencializa ainda mais o seu risco jurídico.
5.3.3 Sobre-jornadas de trabalho
Mais um aspecto que merece nosso destaque são as insanas e insalubres condições de trabalho à qual se sujeitam os médicos. É comum vermos profissionais que possuem vários empregos, em alguns casos mais de uma dezena. E é claro e cristalino que o excesso de trabalho, a falta de sono adequado, o stress pelo desgaste imposto por esta insana jornada de trabalho afetam não somente a atenção do profissional, como também sua sociabilidade.
5.3.4 Mudança no perfil do médico – Mercantilização da medicina
Conforme ressaltado no capítulo anterior, a Mercantilização da Medicina também é grande fomentador tanto do aumento de processos. Contudo, podemos apontar este fenômeno também como um coeficiente do aumento de erros profissionais. Isto porque com esta mudança, parte dos profissionais se tornou mais “fria”, passando a enxergar não um ser humano do outro lado da relação, mas sim, um rim, um pulmão, um coração.
É importante salientar também que atualmente muitos profissionais não praticam a medicina por vocação, mas sim atraídos pelos altos ganhos com a profissão, além do status social que a mesma confere. Desta forma, temos cada vez mais profissionais com um perfil desumanizado, que por muitas vezes sequer possuem a vocação e a dedicação natural inerentes a esta nobre profissão, causando os efeitos dos quais tratamos neste trabalho.
6 ESTATÍSTICAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA MEDICINA
Nos últimos 12 (doze) anos, tivemos um aumento de 1600% no número de processos judiciais envolvendo médicos. Dentre os estados com maior número de processos temos o RJ com 25,69%, SP com 19,27%, RS com 15,92%, PR com 6,7% e MG com 6,14%. Caminhando lado a lado com esta estatística, temos um aumento de 302% de processos no CFM (Conselho Federal de Medicina) em 10 (dez) anos (entre 2001 e 2011). Neste mesmo período, o tivemos um aumento de condenações de 180%.
Ainda segundo o STJ, dentre as consequências mais reclamadas em juízo pelos pacientes, temos a seguinte estatística: Morte com 28,16%, danos estéticos com 12,67%, necessidade de novas cirurgias com 11,26%, perda de órgão ou função com 11,26%, tetraplegia com 8,45% e estado vegetativo irreversível com 7,04%.
A mesma fonte cita as especialidades mais demandadas como sendo as seguintes: Em primeiro lugar a Obstetrícia com 27,14%, seguida da traumato-ortopedia com 15,71%, a cirurgia plástica com 10%, a cirurgia geral com 10%, a neurocirurgia com 7,14%, a pediatria com 5,71% e a oftalmologia com 5,71%.
Em relação ao sexo dos demandantes, foi identificado que 40,65% são homens, enquanto 59,35% são mulheres. Já em relação aos demandados a realidade é outra, com 88% de homens e somente 12% de mulheres.
6.1 Especialidades de maior risco
No que se refere às especialidades médicas mais demandadas nacionalmente, temos em primeiro lugar a Ginecologia e Obstetrícia com 27,14% dos processos, seguida pela Traumato-Ortopedia com 15,71% e pela Cirurgia Plástica, Cirurgia Geral e Neurocirurgia empatados em terceiro lugar com 10%. Dentre as mais demandadas, temos ainda a Anestesiologia, Pediatria, Oftalmologia e Clínica Médica.
Já em MG, temos como mais demandada também a Ginecologia e Obstetrícia com 27,49% dos processos, seguida pela Clínica Médica com 18,92%, Traumato-Ortopedia em terceiro com 11,38% e Cirurgia Geral em quarto com 8,69%. Dentre as mais demandadas, temos ainda a Cirurgia Plástica em quinto lugar, Oftalmologia e Urologia.
Sobre a Ginecologia e Obstetrícia, especialidade “campeã” em processos por todo o nosso país (quiçá em todo o mundo), é fácil compreender o motivo. Os partos e cesarianas, assim como o próprio acompanhamento das gestações em si e os demais procedimentos inerentes à especialidade são de altíssimo risco.
Além disso, geram demasiada expectativa e ansiedade aos pacientes e às suas famílias, motivo que potencializa as chances de processos. Já em relação à Traumato-Ortopedia, o elevado número de acidentes de todas as naturezas justifica o destaque da especialidade no número de processos em relação às demais especialidades.
Por fim, a Cirurgia Plástica é uma especialidade de destaque até mesmo óbvio em meio às mais demandadas, tanto pelo aumento da procura pelas cirurgias embelezadoras nos últimos anos, quanto pela expectativa exagerada dos pacientes diante das reais possibilidades de resultado, além de vários outros fatores já aqui discutidos.
6.2 Comparativo de risco
Por fim, pretendemos com este tópico demonstrar com alguns números a gravidade do quadro atual da Judicialização da Medicina, tanto para o lado dos médicos, quanto para o lado dos pacientes.
Para que se tenha uma ideia da gravidade do quadro, cabe um simples comparativo. O Brasil possui o trânsito mais violento do mundo, com cerca de 45 mil mortos a cada ano. Contudo, somente a infecção hospitalar mata mais de 110 mil pessoas por ano em nosso país. Ou seja, mais do que o dobro do trânsito, sendo que cada uma das mortes por infecção pode originar um processo contra o médico.
O dado acima nos deixa claro que um hospital é o ligar mais perigoso do mundo para qualquer pessoa, sobretudo para um doente. Trata-se de uma “selva” repleta de todas as super bactérias, vírus e tantos outros potenciais contagiantes, motivo pelo qual, em tese, o último lugar para o qual um enfermo deveria ir, é um hospital.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do presente estudo, constatamos que a Judicialização é um fenômeno que, embora atinja a todos os setores da sociedade, seus efeitos são mais gravosos na área da saúde por conta da importância dos bens tutelados. E geralmente seus efeitos recaem sobre os profissionais da área da saúde, sobretudo os médicos, nem sempre com justiça.
Verificamos que existem uma série de eventos e fatores que historicamente, justificam este novo paradigma jurídico que aflige aos médicos e demais profissionais da área da saúde, sendo muitos deles de responsabilidade estranha aos profissionais, mas outros que estão diretamente ligados a eles.
O que podemos concluir é que em meio ao grave problema que vivemos em relação à saúde no Brasil, com falta de estrutura, de médicos e de interesse go governo em servir bem a sociedade, ainda temos que conviver com um mercado social e jurídico “predatório” contra os médicos, onde em meio a milhares de ações ajuizadas todos os anos, prevalecem em números esmagadores as motivadas por má fé e oportunismo, frente às ações que de fato se originam em eventual erro profissional.
Denota-se ainda que, embora o quadro seja preocupante, cabe ao médico cuidar-se de medidas preventivas que evitem as “armadilhas” que a atualidade do mercado impõe a estes nobres profissionais. Se existem no Brasil 7% de médicos respondendo a processos, existem outros 93% que nunca tiveram um processo, número que por si só demonstra que não é uma missão impossível conviver com a realidade da Judicialização da Medicina sem pagar o alto preço que esta impõe aos profissionais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União. 11 jan. 2002.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 12 out. 2016.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em: 12 out. 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, 05 out. 1998. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 28 out. 2016.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União,Brasília, 11 set. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/I8078.htm>. Acesso em: 28 out. 2016.
CANAL, Raul. Erro Médico e Judicialização da Medicina. 1 edição. Brasília/DF: Editora Saturno, 2014.
COLTRI, Marcos. DANTAS, Eduardo. Comentários ao Código de Ética Médica. 2 edição.Rio de Janeiro/RJ: Editora GZ, 2012.
COUTINHO, Léo Meyer. Responsabilidade Ética Penal e Civil do Médico. 1 edição.Brasília/DF: Editora Brasília Jurídica, 1997.
DE FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico. 12 edição. Rio de Janeiro/RJ: Editora Forense, 2014.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 8 edição. São Paulo/SP: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
NIGRE, André. O Atuar do Médico. 3 edição. Rio de Janeiro/RJ: Editora Rubio, 2008.
TEIXEIRA, Sálvio Figueiredo. Direito & Medicina. 1 edição. Belo Horizonte/MG: Editora Del Rey, 2000.