A judicialização da odontologia e o termo “erro odontológico” têm crescido em relevância no âmbito da judicialização da saúde. As ações judiciais que tratam da responsabilidade civil na odontologia são cada vez mais comuns em nossos tribunais, causando um impacto relevante na vida dos cirurgiões dentistas, e na sociedade em geral.
É importante analisar a relevância do mercado brasileiro, no universo global da odontologia. Temos em nosso país mais de 335 mil cirurgiões dentistas, o que representa mais de 20% dos profissionais de todo o mundo. Este numero cresceu 42% somente entre 2010 e 2018. São mais de 1.500 dentistas para cada 1 milhão de habitantes, o que representa mais que o dobro em relação a países como os EUA (610), a França (680) e o Reino Unido (430).
No ano de 2019, haviam no Brasil 412 cursos de odontologia, com um crescimento de 87% desde 2015, quando tínhamos “somente” 200 cursos. Com tantas novas escolas, são entregues ao mercado todo ano pelo menos 11 mil novos profissionais. Mas infelizmente, a qualidade do ensino não acompanha o vertiginoso crescimento na oferta de cursos. São muitas escolas mal avaliadas, gerando profissionais com baixo índice de aprendizado, e de desempenho.
Contudo, nem mesmo uma ótima graduação nas melhores escolas e ótimas especializações são garantia de tranquilidade, caso o profissional não se atente às boas práticas ético-legais que regem a odontologia, e não invista na gestão jurídica da atividade do cirurgião-dentista. Sem estes cuidados atualmente essenciais, certamente o profissional fará parte da triste estatística da judicialização da odontologia, e colocará seu futuro profissional (e financeiro) em grande risco.
Judicialização da Odontologia
Um estudo realizado pela Unicamp junto ao TJSP no ano de 2020 e publicado pela revista Saúde em Debate, indica que a especialidade odontológica mais demandada é a prótese dentária com 22,6% dos processos, seguida da ortodontia com 11,85% e da implantodontia com 10,05%. Em seguida, temos a endodontia com 3,5% dos processos.
Ainda segundo o estudo, 65% dos pacientes buscam indenizações por danos materiais e morais, 22% indenizações pela má qualidade dos serviços odontológicos, e 13% por negativas de coberturas por operadoras de saúde. O mesmo estudo indica ainda um aumento de 305% nas demandas, somente entre 2016 e 2018.
O estudo informa que entre os assuntos mais demandados nas ações judiciais, estão: erro ou imperícia do cirurgião-dentista, uso de técnicas inadequadas ou materiais de baixa qualidade, e o não alcance dos resultados esperados pelo paciente (frustração geralmente causada pela falha na comunicação entre as partes). Em regra, os casos demandam a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Um dos fatores preponderantes no aumento da judicialização da odontologia, é o excesso de profissionais no mercado. Além da queda na qualidade da formação, tal expansão traz uma grande quantidade de profissionais sem vocação, e aumenta a concorrência por pacientes.
A superpopulação de profissionais gera uma espécie de “empreendedorismo” no setor e uma disputa acirrada por pacientes, com a mercantilização da odontologia e o mal uso da publicidade, que trazem como consequência o desatendimento das boas práticas profissionais e diminuição do foco no paciente. Outro aspecto observado é o choque de gerações entre os profissionais mais jovens e os mais experientes, que possuem visões bastante diversas sobre a atuação profissional.
Todos estes impactos ocorrem em um contexto social de grandes mudanças, com um grande avanço social e tecnológico, a quebra do monopólio da informação por parte do profissional, e a democratização do acesso à justiça e à saúde. Sem falar nos imensuráveis impactos do fenômeno das redes sociais, que impulsionaram o já crescente culto à aparência perfeita. Estes impactos criaram um novo perfil de paciente: Mais informado, mais exigente, e mais litigante: O paciente-consumidor.
Não podemos deixar de citar o surgimento e crescimento nos últimos anos da harmonização orofacial, reconhecida em 2019 como especialidade pelo CFO, mas considerada prerrogativa de qualquer cirurgião dentista pelo conselho. A busca pelo rosto perfeito através dos procedimentos de harmonização orofacial, aplicação de toxica botulínicas, preenchedores, fios de PDO, microagulhamentos, e bioestimuladores têm aumentado consideravelmente nos últimos 3 (três) anos. Com a odontologia mais ligada à estética do que nunca, os dentistas viraram alvo de demandas judiciais também nessa especialidade.
Neste contexto, temos uma “nova” relação dentista-paciente, e é imperativo que esta seja administrada pelo cirurgião dentista com vistas ao prisma do Direito Odontológico.
A importância da gestão ético-legal
A atuação do cirurgião dentista do século XXI é baseada na necessidade de conhecimentos que vão além da área odontológica, para atendimento às necessidades ético-legais atualmente demandados pela sociedade.
A gestão jurídica da atividade do cirurgião-dentista não é mais um luxo para poucos: É atualmente essencial para que o profissional conheça de fato seus direitos e obrigações em relação aos pacientes, aos seus colaboradores, e até mesmo às operadoras de saúde. Pois resta claro e cristalino que as ações judiciais e éticas atualmente vão muito além da relação profissional com o paciente, alcançando esferas fora do alcance do conhecimento técnico do dentista, independente de sua formação, especialização e qualidade.
Obviamente, não se sugere que o cirurgião dentista se especialize também em direito odontológico, mas que conheça o mínimo necessário acerca do assunto, e possua uma consultoria adequada para atuar sobretudo preventivamente, mas também emergencialmente, diante das eventuais crises junto aos pacientes.
São considerados essenciais os cuidados na confecção dos contratos de prestação de serviços com os pacientes, sendo este um ponto muito negligenciado pelos dentistas. Os mesmos cuidados se aplicam aos contratos com os fornecedores, com as operadoras de saúde, e tantos outros.
Na mesma esfera, é essencial a elaboração dos termos de consentimento adequados a cada tipo de cirurgia ou procedimento, e a correta gestão do prontuário do paciente. Estes pontos são um desafio cada vez maior aos profissionais, para atendimento às demandas atualmente impostas pelo mercado.
Isso sem falar na gestão da publicidade e dos anúncios, e suas implicações éticas e legais. São nuances que impactam diretamente na judicialização, por conta da interferência na promessa de resultado e na natureza da responsabilidade profissional (objetiva ou subjetiva), além do novo prisma trazido pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que agravou a necessidade de cuidados e expôs ainda mais as falhas dos profissionais.
Outra questão essencial, é a gestão adequada da parte societária e tributária da vida do profissional. A maioria das clínicas é fundada sem atenção às necessidades atuais futuras, gerando um grande desgaste e diversos prejuízos futuros, na correção das irregularidades. Há de ser considerado ainda o aspecto trabalhista, que trata da relação da clínica com os funcionários e colaboradores em geral, como um grande foco de demandas e problemas.
Contudo, o ponto mais importante da gestão ético-legal do cirurgião-dentista é a gestão de crises. Aqui, é essencial que o profissional tenha a seu alcance uma assessoria jurídica adequada, para atuar preventivamente e assertivamente nas crises, evitando que evoluam para uma ação judicial (civil ou penal), ou um processo ético.
Conclusão
Nota-se, que é essencial ao cirurgião dentista o conhecimento, ainda que básico, de conceitos e regras socialmente e sobretudo legalmente impostas, para uma eficiente gestão jurídica do risco profissional, evitando assim, problemas éticos e judiciais, e seus consequentes prejuízos à atividade profissional.
Em linhas gerais, podemos afirmar que além de uma boa formação técnica e do foco na relação com o paciente (o que implica toda a jornada informacional e no atendimento humanizado), é essencial para o cirurgião-dentista uma eficiente gestão do risco jurídico profissional.
Você é cirurgião dentista, e quer saber mais sobre gestão do risco jurídico profissional? O escritório Renato Assis Advogados Associados é especialista em Direito Odontológico. Nossa sede fica em Belo Horizonte e atuamos em todo o país.