Por: Dr. Renato Assis*
O Brasil está entre os 100 países do mundo que reconhecem a saúde como um direito fundamental, assim previsto na sua Constituição Federal. Mais do que isso: é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes, que optou por um sistema de saúde público (financiado pelo dinheiro dos impostos), universal (para todos) e gratuito ao usuário.
O texto constitucional, foi inspirado na Declaração Universal dos Direitos Humanos que previu no artigo XXV:
“todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurarlhe e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.”
Assim, desde 1988 com a criação do SUS – Sistema Único de Saúde, é obrigação inarredável do Estado prover saúde de qualidade a todos os brasileiros. Atualmente, cerca de 25% dos mais de 210,5 milhões de brasileiros são atendidos pelos planos de Saúde Suplementar, ficando os demais (cerca de 158 milhões de pessoas) sob a total e irrestrita responsabilidade do Estado, ou seja, do “atarefado” SUS.
Vejamos o que diz o artigo de introdução do tema na seção II da Carta Magna:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua pro-moção, proteção e recuperação.
Além disso, a Lei Orgânica da Saúde (lei 8.080/90) veio na sequência da CF/88 para complementar as lacunas existentes, visando a efetivação do direito à saúde dos brasileiros.
O art. 7º da lei orgânica da Saúde, prevê que a atuação do SUS deve obedecer aos seguintes princípios: a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; a integralidade da assistência prestada; a igualdade da assistência à saúde a todos os brasileiros sem privilégios ou preconceitos; o total e irrestrito direito à informação aos assistidos; divulgação de informações claras e acessíveis a todos; a participação da comunidade nos processos decisórios e a descentralização político-administrativa; a conjugação de recursos (financeiros, tecnológicos, materiais e humanos) dos entes federados no atendimento à saúde; dentre vários outros.
Posto tudo isso, tem-se como incontestável a obrigação do Estado em garantir a seus cidadãos os direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, que têm como principal alicerce o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), um dos principais norteadores das ações do Estado.
Neste contexto, notamos claramente o quão dura é a “missão” do SUS, e da nossa administração pública. Contudo, ainda mais delicada é a situação dos brasileiros que dependem do sistema, e sobretudo de algumas categorias mais frágeis e especiais de cidadãos brasileiros, que demandam mais cuidados. E esta é exatamente a realidade das pessoas com doenças raras.
A OMS – Organização Mundial de Saúde, conceitua as Doenças Raras como sendo aquelas que afetam até 65 em cada 100 mil indivíduos. Aparentemente, poucas pessoas. Contudo, estimasse que no Brasil existam pelo menos 13 milhões de portadores destas das 8 mil enfermidades. Notamos, pois, que as doenças podem até ser raras, mas seus portadores, nem tanto.
O quadro se agrava pelo fato de as consequências que as doenças causam a seus portadores, serem extremamente graves. Pelo menos 30% de todos estes pacientes morrem antes dos cinco anos de idade, sendo que a maior parte destas doenças (mais de 75%) têm origem genética, e afetam o indivíduo já na infância, de forma grave.
Geralmente as Doenças Raras são crônicas, progressivas e degenerativas, e não possuem uma cura eficaz. Em 95% dos casos, existem somente cuidados paliativos sobre os graves sintomas, através de tratamentos medicamentosos e cirurgias de altíssimo custo. Além disso, na maior parte dos casos tais enfermidades geram em seus portadores a perda de sua autonomia, gerando necessidade de cuidados constantes, afetando assim, de forma grave, não somente a vida do enfermo, mas de toda a sua família.
Em regra, as pessoas com doenças raras possuem à sua disposição os mesmos recursos de que dispõe todos os demais 75% brasileiros que não podem pagar os planos particulares: O SUS, e as políticas públicas gerais de saúde do Brasil, dada a “igualdade” imposta pela lei. Contudo, esta igualdade, quando aplicada a cidadãos com altíssimo grau de desigualdade de necessidades, cria um abismo entre as condições de saúde destas pessoas, deixando os portadores de doenças raras em uma situação alarmante.
As dificuldades das pessoas com doenças raras não param por aí. Para comercialização de medicamentos no Brasil, além da regulação sanitária (ANVISA), faz parte do processo ainda a regulação econômica (CMED). Contudo, não há regras especiais para os chamados “medicamentos órfãos”, e a morosidade dos processos de regulação deixa os pacientes ainda mais fragilizados, sem acesso aos medicamentos que já existem, por conta da morosidade e ineficiência do Estado.
Esta negligente lógica deixou as pessoas com doenças raras praticamente “invisíveis” para o Estado e a sociedade durante muito tempo, por conta da omissão e desassistência que é regra quando o assunto é saúde no Brasil. Realidade que tem mudado muito lentamente, dada a escassez de políticas públicas direcionadas a estes brasileiros tão fragilizados.
Dadas as especificidades das doenças (não à toa chamadas de raras) e as dificuldades existentes aos pacientes e seus familiares, impõe-se a necessidade de um tratamento no mínimo diferenciado aos casos em tela por parte do Estado e do SUS. Contudo, segundo a Interfarma, somente 7 dos mais de 7 mil hospitais brasileiros oferecem serviços especializados aos portadores de doenças raras, e assim como a regulação dos medicamentos, as dificuldades impostas pelo Estado para homologação dos hospitais é uma barreira difícil de se vencer.
Conforme já ressaltado, até mesmo a distribuição de medicamentos já aprovados e regulamentados por conta do SUS é deficiente, pois segundo os gestores públicos do sistema, as dificuldades financeiras e administrativas se agravam em especial quando tratam do fornecimento de medicamentos de custos elevados, sem falar nos não incorporados ao SUS e registrados na ANVISA.
Dado o quadro exposto, a realidade que se impõe no nosso país é que sejam criadas e desenvolvidas políticas públicas para apoio aos portadores de doenças raras, auxiliando-os, assim como às suas famílias, no enfrentamento de tamanho desafio.
Tivemos um importante passo no ano de 2014, quando foi editada pelo Ministério da Saúde a Portaria 199, que instituiu a “Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras” e definiu as diretrizes para a atenção integral dos pacientes no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), assunto abordado mais adiante em nossa obra. Foi um importantíssimo primeiro passo no sentido da efetivação dos direitos dos portadores de doenças raras.
Atualmente, já existem pelo menos 46 Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PDCTS) de doenças raras, que orientam médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e demais profissionais de saúde sobre como realizar o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação dos pacientes, bem como a assistência farmacêutica no SUS. O que sem dúvi-das, mostra algum avanço.
Do total de 154 protocolos que o Ministério da Saúde já publicou, cerca de 30% foram destinados exclusivamente a tratar as pessoas com doenças raras. Só no ano de 2019 foram publicados oito, como Esclerose Múltipla, Acromegalia e Atrofia Muscular Espinhal (AME). Outros 6 estão em elaboração para Doença de Fabry, Doença de Niemann-Pick Tipo C, Doença de Pompe, Epidermólise Bolhosa, Homocistinúria e Deficiência Intelectual.
Mais um importante passo foi a aprovação da Lei 13.930 de 12 de dezembro 2019, que alterou a Lei nº 10.332/2001, para garantir aplicação de percentual dos recursos do Programa de Fomento à Pesquisa em Sa-úde em atividades relacionadas ao desenvolvimento tecnológico de medicamentos, imunobiológicos, produtos para a saúde e outras modalidades terapêuticas destinados ao tratamento de doenças raras ou negligenciadas.
A lei teve como objetivo fomentar a pesquisa científica das doenças consideradas raras, uma vez que os laboratórios farmacêuticos não se interessam em gastar os seus recursos financeiros nestes projetos de pesquisas, sob a justificativa de um número reduzido de usuários e altos custos de produção dos medicamentos órfãos, comprometendo sobremaneira os testes de eficácia, que não apresentam resultados significativos. Com a inovação, a previsão é de que haverá maior agilidade no processo de análise e aprovação dos medicamentos, otimizando os recursos disponíveis de forma a garantir medidas eficientes em benefício dos pacientes.
Contudo, mesmo com os referidos avanços, a situação de milhares de brasileiros é crítica. Pessoas acometidas por uma série de enfermidades dependem quase que exclusivamente da justiça para efetivação de seus direitos e busca dos respectivos medicamentos, tais como: Distrofia muscular de Duchenne (Eteplirsen / Exondys 51), Síndrome hemolítico-urêmica atípica – SHUa (Soliris), Distrofinopatia (Translarna), Aspergilose invasiva (Cresemba), Tirosinemia hereditária do tipo 1 HT-1 (Nitisino-na / Nitikabs), Veno-oclusiva hepática – DVOH (Defibrotida / Defitelio), Hipofosfatemia ligada ao cromossomo X X-linked hypophosphatemia XLH (Crysvita), Síndrome de Prader-Willi (Somatropina), Doença de Wilson (Cuprimine / D-penicilimina), e Angioedema hereditário (lanadeluma-be / Takhzyro). Estes são só alguns exemplos, dentre centenas de outras enfermidades, e medicamentos demandados para o tratamento.
Desta forma, notamos que há ainda um grande caminho a ser percorrido para efetivação dos direitos fundamentais das pessoas com doenças raras, pois mesmo com a instituição das políticas mais acima citadas, persistem as dificuldades à garantia dos direitos destes milhões de brasileiros. Sobretudo, o direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, bases da nossa jovem democracia.
O caminho encontrado pela maior parte dos pacientes portadores de doenças raras e seus familiares é a judicialização dos casos, a fim de compelir o Estado a cumprir com seu dever constitucionalmente imposto. Contudo, no Poder Judiciário esbarramos em outros problemas, e conseguir a efetivação dos direitos das pessoas com doenças raras mesmo na justiça, é um grande desafio.
Temos um Poder Judiciário tão sobrecarregado e falido quanto nosso sistema de saúde. Trata-se de uma válvula de escape que em muitos dos casos, não funciona. Segundo o CNJ, em 2019 existiam no Brasil quase meio milhão de processos versando sobre a área da saúde. Em menos de 10 anos, o aumento das demandas foi de cerca de 85%, o que representa o dobro do aumento do total de processos.
É nessa “vala comum” que se encontram as ações judiciais dos portadores de doenças raras, que visam a efetivação de seus direitos pela via judicial. Em meio a 500 mil outras ações que versam sobre a saúde. E mais uma vez, sem qualquer tratamento diferenciado.
Desta forma, é essencial que as pessoas com doenças raras busquem através do Poder Judiciário a efetivação de seus diretos, sobretudo o direito à vida, à saúde e à dignidade, constitucionalmente garantidos. Mas para tanto, é essencial a atuação de um advogado especializado na área da saúde, sobretudo nas demandas que versem sobre os direitos das pessoas com doenças raras, e que saiba contornar os problemas aqui citados, conseguindo de fato garantir o cumprimento da Constituição Federal, garantindo os direitos das pessoas com doenças raras.
Se você vivencia as situações citadas no presente artigo, não deixe de falar conosco. O escritório Renato Assis Advogados Associados atua há mais de 15 anos na área da saúde, sobretudo garantindo através do Poder Judiciário a efetivação dos direitos constitucionalmente garantidos às pessoas com doenças raras.
*Renato de Assis Pinheiro é fundador do escritório Renato Assis Advogados Associados. É professor de Direito Médico, especialista em Direito da Saúde e Terceiro Setor; pós-graduado em Direito Médico pela Universidade de Araraquara (SP), conselheiro jurídico e científico da ANADEM (Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética).
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