Por: Renato Assis
No dia 22 de maio de 2018 ocorreu a aprovação, pela Comissão Especial do PL 3139/2015, do relatório substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Vinícius de Carvalho, que visava inicialmente alterar o Decreto-lei 73/66 para proibir e criminalizar a atividade de Proteção Veicular e Socorro Mútuo, por parte de associações e cooperativas. A aprovação ocorreu em uma “votação simbólica” de menos de 3 (três) minutos de duração.
Em tese, o substitutivo foi o resultado da análise das nada menos que 16 (dezesseis) emendas que foram apresentadas por 7 (sete) outros deputados federais, membros e suplentes da comissão especial.
Apresentaremos a seguir as principais mudanças acatadas pela Comissão Especial em seu novo relatório, que agora segue para votação no plenário da câmara, para depois tramitar ainda pelo Senado Federal e Presidência da República.
EMENDAS RETIRADAS DE PAUTA
Cumpre ressaltar que foram retiradas pelo próprio autor, deputado Arnaldo Faria de Sá, as emendas 1 e 2, por serem estranhas ao PL 3139. Por este motivo, as mesmas não são contempladas no presente texto.
ADEQUAÇÃO ORÇAMENTÁRIA E FINANCEIRA
Na análise deste tema, o novo relatório indeferiu por inadequação orçamentária as emendas 3, 4 e 16, que propunham o cancelamento dos autos de infração já aplicados pela SUSEP, assim como da titularidade da cobrança de taxa de fiscalização à agência autorreguladora (solicitado na emenda 3). Justificou os indeferimentos alegando entendê-los como renúncia de receitas públicas federais, embora o relatório discorra sobre as isenções e o tratamento diferenciado do qual gozam as associações e cooperativas. As demais emendas foram aprovadas neste quesito de adequação orçamentária e financeira.
Curioso é o fato de o novo relatório entender o eventual cancelamento dos autos de infração como “renúncia de receita pública federal”, visto que os autos foram aplicados pela SUSEP ao total arrepio dos princípios norteadores do Direito, em processos administrativos totalmente viciados, nulos de pleno direito. Autos de infração estes, que vêm “caindo como moscas” diante da análise do Poder Judiciário, quando aplicados.
CONSTITUCIONALIDADE, JURIDICIDADE E TÉCNICA LEGISLATIVA
O novo relatório indeferiu por inconstitucionalidade as emendas 7, 11 e 14 que aos olhos da Comissão Especial visam modificar detalhes na estrutura de funcionamento da SUSEP e do CNSP. Justificou tal medida aduzindo que é matéria de iniciativa privativa do Presidente da República, sendo portanto uma invasão de competência por parte do Poder Legislativo qualquer alteração nos funcionamentos dos referidos órgãos.
Desta forma, com passaram para a análise do mérito somente as emendas 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13 e 15, por entenderem os legisladores que as demais careciam de condições legais para seu prosseguimento.
EMENDAS APROVADAS PELA COMISSÃO ESPECIAL
Ao final, sob os argumentos aqui apresentados, restaram aprovadas pela Comissão Especial do PL 3139/2015 as emendas de numero 8, 9 e 10 apresentadas pelo Deputado Federal Oscar Serraglio, assim como as emendas 13 e 15 apresentadas pelo Deputado Federal George Hilton. Resta, enfim, exposta a posição dos referidos deputados acerca do tema discutido no referido projeto, conforme veremos a seguir.
Passaremos à análise das emendas aprovadas e sua justificativa, além de uma reflexão crítica sobre os eventuais impactos caso o PL 3139/2015 sejam aprovados conforme pretende a Comissão Especial, que aprovou por unanimidade o relatório em questão.
ANÁLISE DE MÉRITO
Em análise das emendas 5, 6, 8, 9, 10, 12, 13 e 15, entendeu o relator que todas elas aperfeiçoaram o texto inicial. Segundo o deputado, foram identificados “2 grupos distintos” dentre os legisladores que apresentaram as emendas, abaixo descritos:
GRUPO 1: Incluídos neste grupo as emendas 5, 6 e 12, que segundo o relatório apontavam para o “desvirtuamento ou flexibilização além do razoável” das bases do substitutivo, “tornando inócua a regulação e a supervisão das entidades de autogestão”. Segundo o relator, tais medidas causariam um “esvaziamento da lógica normativa” proposta no relatório.
GRUPO 2: Incluídos neste grupo as emendas 8, 9, 10, 13 e 15, que na visão do relator apontam “importantes ajustes finos ao substitutivo, possibilitando uma regulação e fiscalização eficazes e eficientes”.
Optou o relator, portanto, pelo apoio ao segundo grupo de emendas. Notamos, contudo, uma forte influência da SUSEP e da Receita Federal do Brasil na apreciação das emendas, sendo os referidos órgãos até mesmo citados no relatório.
Verificamos, pois, que foram “privilegiadas” na análise da Comissão Especial as emendas que atendem exclusivamente aos interesses da SUSEP, que desde o surgimento da atividade nunca deixou de ser o de varrê-la do mercado, sob a atual “máscara” de regulamentação. O que ficará claro diante da análise que será feita a seguir, acerca dos pontos acatados pela Comissão Especial nas emendas que ultrapassaram as análises iniciais e que foram convenientemente incluídas no “grupo 2” acima.
ÂMBITO TRIBUTÁRIO
No âmbito tributário, entendeu o relator que os novos entrantes do mercado de seguros, identificados no relatório como “entidades de autogestão e cooperativas de seguros”, estariam sujeitos ao mesmo regime tributário das sociedades seguradoras.
Para sustentar tal entendimento, citou o relator o princípio da isonomia tributária (art. 150, inciso II da CF), alegando que as associações e cooperativas, assim como as sociedades seguradoras, oferecem no mercado “produtos iguais ou similares”. Não conferir igualdade tributária seria, na visão da comissão especial, conferir vantagem competitiva de natureza tributária aos novos entrantes.
Definiu o relatório, portanto, a inclusão do tema no Art. 4o do relatório substitutivo, tratando deste ponto específico.
Mais uma vez notamos uma visão míope (ou maliciosa) dos legisladores, pois de forma incrivelmente contraditória, o relatório reconhece as isenções e o regime especial conferido constitucionalmente às entidades de terceiro setor, mas ao mesmo tempo, busca equipará-las às sociedades anônimas que trabalham com objetivo de obter lucro, entendendo ambas como “contribuintes em situação semelhante” por vislumbrar que “oferecem produtos iguais ou similares”. Um total contrassenso.
A aprovação da lei da forma atual, conforme sugere o relatório da comissão especial, é ferir de morte os pilares que possibilitam a sobrevivência das entidades de terceiro setor, eliminando suas isenções e o tratamento diferenciado, e ainda assim, vedando-lhe o lucro natural das sociedades limitadas e anônimas. E abre um precedente perigoso para as entidades de terceiro setor de todas as outras categorias, por permitir claramente que o interesse individual de poucos se sobreponha ao direito coletivo de milhares, até então constitucionalmente garantido.
ÂMBITO REGULATÓRIO
Por fim, entrando no âmbito regulatório, o relator apontou 6 (seis) pontos primordiais, e não menos controversos. Passamos à análise dos mesmos.
Em primeiro plano, o relator formalizou que seria permitido, por parte das entidades atingidas pela lei, somente proteção de riscos patrimoniais, ponto a ser formalizado mediante alteração no art. 3-A do Decreto-lei 73/66.
Em segundo lugar, através de alteração do art. 24 do Decreto-lei 73/66, as entidades atingidas pela lei seriam obrigadas a limitar sua atuação à atividade de proteção patrimonial e nada mais, não podendo atuar no SNSP (Sistema Nacional de Seguros Privados) e outra área, concomitantemente.
Além disso, a SUSEP e o CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) poderão, caso o projeto seja aprovado, regular o novo mercado proporcionalmente “de acordo com regionalidades”, ou seja, editar regras diferentes para cada região do País, assim como de acordo com a abrangência territorial de suas atividades, ao seu bel-prazer.
Ato seguido, em quarto lugar, através de alteração no alínea B do art. 125 do Decreto-lei 73/66, os corretores que atuarem neste mercado após a aprovação da lei não poderão ser diretores, membros, funcionários e etc. das entidades associativas e cooperativas. Tal medida serviria para evitar eventual conflito de interesses.
Em quinto lugar, no que tange ao regime sancionador, dispõe o relatório sobre a criação de novas condições para que possa a SUSEP supervisionar de forma mais racional e efetiva este novo mercado. Para tanto, pretende o relator conferir à SUSEP “margem de discricionariedade” para adotar as ações de supervisão “que entender mais conveniente e efetiva do que o processo administrativo sancionador”. Para tanto, altera Art. 118 do Decreto-lei 73/66, para basicamente, em vez de processo administrativo, ser autorizado à SUSEP “fazer o que desejar” no curso de suas atribuições, sem necessidade de se ater aos princípios norteadores do processo administrativo.
Por fim, em sexto lugar e no que se refere ao resseguro, o relatório possibilita às novas entidades a contratação de tais coberturas, assim como as sociedades seguradoras.
Podemos notar que as mudanças impostas no que tange ao âmbito regulatório são ainda mais contraditórias ao tom “regulamentador” que o PL 3139/2015 ganhou após o trabalho da Comissão Especial.
Em relação ao primeiro ponto, qual seja a limitação da atividade aos riscos patrimoniais, não vemos qualquer problema, visto que atualmente os riscos abrangidos pela atividade das entidades se limitam a esta categoria. O mesmo se aplica em relação à possibilidade de contratação de resseguros, que não traz nenhum malefício ou óbice à atividade.
O mesmo não podemos dizer em relação à atuação das entidades tão somente com a proteção patrimonial, sem qualquer atuação em qualquer outra área de atuação, o que se mostra uma delimitação abusiva e injustificada da atuação das entidades com quaisquer outros benefícios que interessem aos associados. Na mesma linha, podemos apontar a proibição de que corretores atuem como corretores ou membros das entidades, sob a justificativa de se evitar eventual “conflito de interesses”. Ora, mais uma vez remetemos ao mercado de seguros privados operado pelas sociedades anônimas. Onde está tal proibição? Não existe. Portanto, trata-se de uma limitação de direitos sem qualquer fundamento. Contudo, dos pontos divergentes, estes são sem dúvidas os menos gravosos. Passemos à análise dos demais.
Causa grande estranheza a disposição de que a regulação do mercado a ser operacionalizada pela SUSEP e pelo CNSP poderá atender a “regionalidades”, ou seja, editar normas regulatórias diferentes para cada região do País. Ora, trata-se de uma atividade de abrangência nacional, assim como a de seguros privados, e nem mesmo esta segunda possui normas regulatórias “regionalizadas”, por que no caso das associações e cooperativas existirá tal abertura? No mínimo estranho tal proposição.
Por fim, passamos ao ponto mais grave e ABSURDO do relatório substitutivo, acerca do regime sancionador. Sob a justificativa de possibilitar condições à SUSEP para uma fiscalização mais “racional”, o relatório confere ao órgão “margem de discricionariedade” para ADOTAR AS AÇÕES DE SUPERVISÃO QUE ENTENDER MAIS CONVENIENTE E EFETIVA DO QUE O PROCESSO SANCIONADOR. Ou seja, autoriza à SUSEP “fazer o que quiser”, ao total arrepio dos princípios norteadores dos processos como contraditório e ampla defesa, e simplesmente agir ao seu bel-prazer no ato fiscalizatório.
Ora, a justificativa de tal medida não era uma fiscalização mais RACIONAL? Um total contrassenso, principalmente quando se trata de um órgão que, mesmo sujeito às regras de Direito do processo administrativo sancionador, já as ignorava totalmente e agia à revelia de qualquer “racionalidade”, muito pelo contrário, atuava de forma até mesmo criminosa, chegando a adulterar processos administrativos e apresentar documentos maliciosos em juízo.
REVIRAVOLTA
Os acontecimentos das últimas semanas deixaram claro e cristalino que existem muitos interesses difusos por trás da tramitação do PL 3139/2015, e que nem sempre a atuação destas “forças ocultas” atende aos critérios da transparência, razoabilidade e legalidade.
Embora o apensamento do PL 5571/2016 ao projeto em questão tenha sido negado em novembro de 2016, e tenha ainda sido criada a comissão especial para aprovação do PL 5571/2016; nas últimas semanas a comissão especial foi “misteriosamente” dissolvida e este projeto foi apensado ao PL 3139/2015, embora tenham objetos diversos e justificativas totalmente antagônicas.
O cancelamento da comissão especial e o apensamento podem ser vistos como um revés até mesmo maior do que a aprovação do substitutivo que ocorreu ontem, pois tal aprovação era certa de ocorrer, visto que a comissão especial foi formada pelo próprio autor do projeto, com o objetivo claro e inarredável de o aprovar. Já o PL 5571/2016 era uma das grandes apostas das entidades associativas e cooperativas para uma regulamentação coesa, que agora passa a depender de novas estratégias das lideranças do setor para que os trabalhos visando o desenvolvimento de um projeto favorável sejam retomados.
O QUE ACONTECE AGORA?
Embora a aprovação do relatório da Comissão Especial seja um revés, conforme já aduzido, era totalmente esperado. Contudo, há aspectos positivos a serem considerados.
Em primeiro lugar, a transformação do PL (projeto de lei) em PLC (projeto de lei complementar) dificulta a tramitação e aprovação final, pois o projeto passa a depender da aprovação em votação por maioria absoluta no plenário da câmara dos deputados (pelo menos 257) e em votação presencial e nominal. Ou seja, uma coisa é aprovar um projeto visivelmente inconstitucional em votação simbólica dentro do “clubinho” convocado pelo Deputado Lucas Vergílio (a Comissão Especial). Outra coisa é o aprovar em plenário, mediante a análise e aprovação de pelo menos a maioria mais um.
Cumpre ainda ressaltar que após aprovado no plenário da Câmara dos Deputados, o projeto dependeria ainda de ser aprovado no Senado Federal, e na Presidência da República. O que certamente proporcionará às entidades interessadas diversas oportunidades de rediscutir o assunto.
O que podemos apontar de positivo no relatório é que, ao contrário do que pretendia inicialmente o autor do projeto, o relatório aprovado não proíbe e criminaliza a atividade (pelo menos abertamente) mas “finge” regulamentar através de um consenso entre as partes que não ocorreu. E essa pseudo-regulamentação aliada à não proibição ostensiva amplia o leque de opções para as entidades que lutam pela regulamentação verdadeira da atividade.
Fato é que, no momento cabe às entidades que operam a Proteção Veicular e o Seguro Mútuo seguir combatendo a tramitação do PL 3139/2015, para que, caso a regulamentação de fato venha através deste projeto, venha da melhor forma possível, possibilitando a continuidade das entidades no mercado de forma que sigam atendendo à população.
Contudo, o que já se tem como certo é que este mercado irá mudar, e somente perdurarão as entidades que se anteciparem em atender aos melhores princípios de gestão administrativa, financeira, contábil e jurídica, traçando o caminho já desenhado pelos principais consultores jurídicos da área. Aos demais, caberão as duras penas da lei. Pois enquanto todos estes aspectos são discutidos no Poder Legislativo (e ainda o serão pelos próximos anos), as ações e investigações no Poder Judiciário seguem avançando cada vez mais, cessando as atividades de mais e mais entidades e condenando seus diretores, salvo raras exceções de sucesso, onde há a atuação de juristas de renome na área e um indispensável bom trabalho preventivo de adequação das entidades aos parâmetros exigidos pelos princípios que regem o Terceiro Setor, analisados a fundo pelas atuais investigações e ações.
Portanto, o único caminho para a sobrevivência das entidades é a atuação em perfeita sintonia com os princípios do Terceiro Setor, atendendo aos melhores padrões éticos e com uma criteriosa atuação preventiva em relação aos aspectos jurídicos, contábeis, administrativos e de governança corporativa, adotando desde já as medidas previstas para o futuro que possibilitarão a adoção das melhores estratégias de defesa na esfera judicial e administrativa, frente às mais diversas demandas que paulatinamente surgem em face destas entidades.