Por: Renato Assis
Um ponto intrínseco e essencial ao Socorro Mútuo ou Proteção Veicular, e até então negligenciado por uma considerável parcela das milhares de entidades que atuam no segmento por todo o Brasil, é a necessidade de que sejam constituídas em caráter de “grupos restritos de ajuda mútua”.
Faz parte da natureza da atividade que este determinado grupo homogêneo de indivíduos, diante de dificuldades impostas pelo mercado por conta da subjetividade comum que lhes fragiliza, se una em busca de uma solução a ser alcançada por meio da união. É o mutualismo, base tanto do Socorro Mútuo quanto do Seguro Empresarial, sendo aplicado em sua mais pura essência.
Contudo, este grupo não deve (e não pode) ser totalmente heterogêneo. E a entidade não pode atuar “comercialmente” no mercado, buscando indivíduos a esmo para compor seus quadros.
Tal entendimento se dá para que a essência da modalidade não seja deturpada, com a entidade atuando de forma irrestrita no mercado, captando optantes sem qualquer critério que os restrinja como um grupo homogêneo na fragilidade que lhes é comum e que consequentemente, os aproxima.
A III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal firmou entendimento no que concerne à interpretação atribuída ao art. 757 do Código Civil/2002, através do Enunciado n. 185, com a seguinte redação:
“A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão”.
Tal Enunciado foi acompanhamento por uma brilhante justificativa, que passo a transcrever:
“Há duas concepções de seguro, conforme suas origens. O seguro do tipo alpino surgiu nos Alpes suíços e é fundado no princípio da solidariedade. Os segurados compartilham entre si os riscos comuns, organizando-se em sociedade mútuas e prevenindo-se contra os infortúnios. Estipulam geralmente pecúlios para o caso de morte, sendo freqüentes também os seguros de saúde e de acidentes.
O segundo tipo é o seguro capitalista, denominado anglo-saxão. É originário da cobertura dos riscos da navegação de longo curso e animado pelo lucro do segurador.
Percebe-se claramente que no contexto do enunciado, uma atuação “capitalista” no mercado está em um extremo totalmente oposto do conceito de Socorro Mútuo, que sustenta a Proteção Veicular. Não existe a base sólida da solidariedade no caso das entidades que atual de forma agressiva no mercado, estando presentes em todo o território nacional, “comercializando” de fato, diversos produtos e serviços a um universo imensurável de indivíduos, sem qualquer identidade comum.
Cumpre aqui ressaltar que não se sustenta eventual homogeneidade entre os optantes, com a utilização de critérios abstratos para o caso, como “brasileiros”, “paulistanos”, “proprietários de veículos”, ou “pertencentes à classe média”. Pois isso não segrega um grupo homogêneo, mas sim todo um universo de milhares de pessoas, sem qualquer identidade que lhes fragilize, para que a ajuda mútua proposta lhe solucione ou atenue o problema.
Enfim, não é raro vermos no mercado cooperativas e associações de Proteção Veicular que, com o passar do tempo, “abandonam” o conceito de “grupo restrito de ajuda mútua” (ou até sejam fundados e atuem desde sempre, sem tal caráter). A estes grupos, pesa a carência da natureza de grupo restrito, o que aos olhos do STJ em recente julgado sobre o tema, macula a entidade em sua essência.
Vejamos:
“Entretanto, como já assinalado acima, a parte requerida sequer possui natureza de “grupo restrito”, visto que “comercializa” o seu produtor de forma abrangente (…)”
Tal posicionamento foi reafirmado em recente decisão do STJ, onde foi assentada a obrigatoriedade de que as entidades de Socorro Mútuo sejam de fato grupos restritos de pessoas que possuem particularidades comuns, ou seja, um grupo homogêneo em algum sentido.
Vejamos:
“O Enunciado n. 185 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, no que concerne à interpretação atribuída ao art. 757 do Código Civil/2002, assenta que “a disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão”.
A questão desta demanda é que, pela própria descrição contida no aresto impugnado, verifica-se que a recorrida não pode se qualificar como “grupo restrito de ajuda mútua”, dadas as características de típico contrato de seguro, além de que o serviço intitulado de “proteção automotiva” é aberto a um grupo indiscriminado e indistinto de interessados, o que resulta em violação do dispositivo do art. 757 do Código Civil/2002, bem como dos arts. 24, 78 e 113 do Decreto-Lei n. 73/1966.
(…)
Não se está afirmando que a requerida não possa se constituir em “grupo restrito de ajuda mútua”, mas tal somente pode ocorrer se a parte se constituir em conformidade com o disposto no Decreto-Lei n. 2.063/1940 e legislação correlata, obedecidas às restrições que constam de tal diploma legal e nos termos estritos do Enunciado n. 185 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal.”
Sobre o final da citação acima, cumpre apresentar o artigo 2º do Decreto-Lei n. 2.063/1940, que diz:
“Art. 2º Ficam excluidos do regime estabelecido neste decreto-lei o Instituto de Resseguros do Brasil e quaisquer outras instituições criadas por lei federal, bem como as associações de classe, de beneficência e de socorros mútuos que instituam pensões ou pecúlios em favor de seus associados e respectivas famílias.
Percebe-se, pois, que a lei em vigor é clara em afastar do regime de Seguros Empresariais as entidades que atuam com Socorro Mútuo, como as associações e cooperativas de Proteção Veicular. Contudo, na visão do STJ, o enquadramento como grupo restrito de ajuda mútua não é opcional, o que de fato faz todo sentido.
A própria SUSEP, autarquia federal que fiscaliza o mercado de seguros, ressaltou a necessidade de que as entidades se enquadrem na qualidade de Grupos Restritos, no relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria SUSEP 6369/2015, no tópico em que tratava da necessidade de uma regulamentação legal do setor de Socorro Mútuo. Vejamos:
“Discutiu-se o assunto, tendo-se chegado à conclusão de sua indiscutível importância, com a finalidade de assegurar o bom funcionamento da atividade, preservando-a da atuação de grupos que não sejam efetivamente restritos, ou que não representem adequadamente os seus membros ou que transcendam indevidamente os limites da atividade de auxílio mútuo, adentrando na de seguro.”
Acerca do “alerta” feito pela SUSEP em relação ao fato de “se adentrar na atividade de seguro”, ressaltamos que comuns são os casos onde, além de não constituírem grupos restritos de ajuda mútua, as associações e cooperativas de Proteção Veicular, ofertam aos “associados” benefícios que embora leve o nome de proteção veicular, tecnicamente possuem todas as características de um seguro empresarial. Há ainda casos em que toda a gestão da entidade de terceiro setor é feita claramente como empresa, com todos os requisitos que a aproximam deste conceito e a afastam totalmente do conceito mutualista e de Terceiro Setor.
Tais entidades possuem, pois, uma tripla e fatal mácula em sua essência, e ferindo de morte sua distorcida natureza jurídica mutualista e tornando sua atuação totalmente ilegal. Contudo, estes são assuntos para outro momento.
Constata-se, pois, que até mesmo a SUSEP e o STJ têm considerado a legalidade da atividade de Socorro Mútuo, mas ressaltado o essencial e perfeito enquadramento das entidades de Socorro Mútuo no conceito de Grupo Restrito de Ajuda Mútua, e sem qualquer identidade com os Seguros Empresariais. Conceito este que poucos dominam realmente, o que dificulta o acesso das entidades espalhadas por todo o País a informações e orientações qualificadas, maculando sua atuação de forma fatal.