Por: Renato Assis
A Lei Federal 12.846/2013, também chamada de Lei Anticorrupção, surgiu em um contexto importante, em meio à batalha contra a corrupção por parte dos agentes e empresas públicas, e pelo fortalecimento das instituições de fiscalização e controle.
Contudo, muitos não sabem que a referida lei, assim como os princípios que a norteiam, são aplicáveis a todas as pessoas físicas e jurídicas, empresas ou entidades com caráter diferenciado e especial. E isso inclui as entidades de Terceiro Setor, e em especial no presente artigo, as associações de Proteção veicular e Socorro Mútuo.
Terceiro Setor é um termo sociológico utilizado para definir organizações de iniciativa privada, sem fins lucrativos e que prestam serviços de caráter público. Podemos citar como exemplos as ONG’s, as entidades filantrópicas, as OSCIP’s, as organizações sem fins lucrativos, e ainda outras formas de associações civis sem fins lucrativos.
O Terceiro Setor teve seu marco com a publicação do Marco Regulatório do Terceiro Setor, a Lei 13.019/2014, que veio com a finalidade de conferir mais transparência à entidades pertencentes à categoria, e ainda facilitar e modernizar suas relações com o Poder Público e o mercado em geral.
Na verdade a atenção dispensada pelas instituições públicas de controle e fiscalização aos entes do Terceiro Setor é ainda maior, dada a relação de “parceria” do governo e do Poder Público para com as entidades, formalizadas por muitas vezes através de arranjos e contratos que podem representar investimento direto de recursos públicos nas entidades. Mas na maioria das vezes, o apoio ofertado para tais entidades é através de subsídios, isenções e imunidades concedidas, dado o caráter assistencial e sem finalidade lucrativa das entidades.
O recente aumento das atenções do Fisco e demais entes governamentais em direção às entidades imunes e isentas faz com que, cada vez mais, essas entidades tenham necessidade de estar em plena conformidade com as normas inerentes à sua atividade.
No caso das entidades que trabalham com investimentos públicos, os maiores riscos passam por dois panoramas: A responsabilização objetiva da entidade em caso de atos lesivos previstos na Lei Anticorrupção, e a responsabilização dos diretores e gestores pela administração “inadequada” dos recursos públicos. Contudo, há um terceiro risco latente que aflige não só estas entidades, mas sim todas, incluindo as que não contam com incentivos: O de lavagem de dinheiro. E isso inclui as entidades de Proteção veicular e Socorro Mútuo.
Muito embora tais entidades não possuam finalidade lucrativa, e a consequente distribuição de dividendos, tais entidades, assim como seus diretores e gestores, não estão isentas de responsabilidade objetiva por fraudes e prejuízos, independente de culpa. A própria Lei Anticorrupção não diferencia em sua redação a responsabilidade outorgada às entidades e seus diretores e gestores por conta de possuir ou não finalidade lucrativa.
Desta forma, percebe-se que a referida lei é plenamente aplicável às entidades de Proteção Veicular e Socorro Mútuo, estando as entidades sujeitas à aplicação da mesma, sob o enfoque da responsabilidade objetiva (independente de culpa).
A RESPONSABILIDADE DOS DIRETORES E GESTORES
Sobre a responsabilidade de diretores e gestores, o próprio art. 3º da Lei prevê:
“a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.”
Verifica-se, pois, que a responsabilidade dos diretores e gestores sobre atos lesivos aos interesses da entidade é direta e inarredável. E o mesmo vale para qualquer outra pessoa que participe dos atos ilícito, mesmo que não faça parte dos quadros da entidade.
Chama a atenção o fato de que na Lei Anticorrupção a responsabilidade outorgada é de natureza objetiva, ou seja, independe de culpa ou dolo do agente. Neste caso, basta que o ato lesivo previsto na lei seja comprovado, e que haja benefício (ainda que não exclusivo).
Sobre a responsabilidade penal, embora nosso ordenamento jurídico prime pela responsabilidade penal somente de pessoas naturais (com a exceção dos crimes ambientais), o Código Penal equipara os diretores e gestores de entidades paraestatais a funcionários públicos, podendo, em tese, tal equiparação atingir as entidades foco do presente artigo. Nos casos em que hajam recursos públicos envolvidos, isso abriria margem até mesmo para a responsabilização dos diretores e gestores em relação a crimes como peculato e corrupção passiva (entendimento este já pacificado pelo STJ em relação ao art. 327 do Código Penal).
AS PENALIDADES PREVISTAS
A Lei Anticorrupção prevê severas penalidades administrativas, como por exemplo, a aplicação de multa que varia de 0,1% a 20% do faturamento bruto da entidade no último exercício (descontados os tributos). Caso os valores não sejam identificados, a multa pode variar de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais), cumprindo salientar que os valores podem ser ainda mais altos, visto que a lei prevê que a multa não poderá ser inferior à vantagem obtida no crime.
Não obstante a severa multa, as entidades e seus diretores e gestores ainda estão sujeitos às seguintes sanções:
- Perda de bens, direitos e valores obtidos direta ou indiretamente;
- Suspensão ou interdição das atividades;
- Dissolução da entidade;
- Proibição de receber incentivos e subsídios por 1 a 5 anos;
Contudo, a Lei Anticorrupção prevê certas condições a fim de mitigar as penalidades aplicadas às entidades, como a existência de um programa de Compliance.
O COMPLIANCE COMO FORMA DE MITIGAR OS RISCOS
A adoção de medidas e procedimentos internos com o intuito de evitar e combater irregularidades é muito valorizado pelo Poder Público. Neste contexto, é indispensável a implementação destas políticas nas organizações, para que as entidades se protejam contra problemas desta natureza.
O Compliance é um conjunto de medidas implementadas em uma instituição para garantir princípios éticos, normas legais e regulamentares, políticas e diretrizes estatutárias.
A palavra Compliance tem origem no verbo em inglês to comply, que significa “estar de acordo com as regras”. No Brasil, embora não haja uma tradução específica, o termo tem sido traduzido como “integridade”.
Este termo diz respeito a cumprir as leis e normas de uma atividade, além de seguir certos princípios éticos e morais. Trata-se de um conceito cada vez mais importante em todo tipo de organização, sobretudo no Terceiro Setor.
O principal objetivo do Compliance dentro de uma entidade é garantir que, independentemente de quem venha a administrá-la, ela terá uma estrutura capaz de garantir a integridade de suas ações (ou de sinalizar que algo está sendo feito da maneira errada) possibilitando que o problema possa ser corrigido a tempo, e a reputação da entidade não seja colocada em risco.
Existem três eixos que orientam o Compliance:
- Prevenção: São avaliadas as possíveis ameaças à organização, e instituídas as regras internas de mitigação, baseadas no código de conduta e de ética. São criadas as medidas de controle interno, e instauradas as formas de treinamento e comunicação.
- Detecção: São monitoradas todas as ações realizadas a organização, e criados os canais para se denunciar eventuais irregularidades. São controladas e fiscalizadas as negociações com terceiros.
- Ação: São as investigações internas e externas, sendo aplicadas as medidas contra as violações e feitas as auditorias permanentes, como forma de revisar o programa e propor melhorias.
Verifica-se que o próprio Marco Regulatório do Terceiro Setor está em total sintonia com a tendência do Compliance, por conferir às entidades caráter análogo às empresas para contratações com o Poder Público, e firmando a obrigatoriedade de obedecer a diversos e valorosos princípios (legalidade, legitimidade, moralidade, publicidade, economicidade, eficiência, eficácia e impessoalidade).
Portanto, verifica-se que a adoção e implementação de um programa de Compliance é a melhor forma de se prevenir contra eventual responsabilização tanto da entidade quanto de seus diretores e gestores, nas vias administrativa, civil e penal.
O COMPLIANCE NA PROTEÇÃO VEICULAR E SOCORRO MÚTUO
Antes mesmo de se implementar um programa de Compliance nas entidades de Proteção Veicular e Socorro Mútuo, é preciso se atentar ao mais importante, que precede qualquer programa: O devido atendimento aos princípios constitucionais previstos no parágrafo mais acima, e o atendimento às formalidades previstas na legislação aplicável às entidades desta natureza.
Podemos citar aqui como ferramentas interessantes a formalização e divulgação do trabalho da entidade e seus consequentes resultados, a correta e devida prestação de contas e fiscalização ativa por parte do Conselho Fiscal, o devido alinhamento jurídico da entidade para com a natureza da atividade praticada, a realização de auditorias internas, correta realização das assembleias gerais previstas no estatuto social, formalização da contabilidade conforme prevê a lei, dentre outras. Ou seja, estruturar uma base sólida para a construção de uma estrutura eficiente. Neste tocante, o acompanhamento por profissional qualificado no assunto é indispensável, dada a peculiaridade.
Só então a entidade deve implementar os controles e procedimentos de prevenção de irregularidades, seguindo as diretrizes estabelecidas na Lei Anticorrupção, e ainda, as orientações provenientes de órgãos como MPF (Ministério Público Federal), AGU (Advocacia Geral da União), CGU (Controladoria Geral da União) e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), plenamente atuantes quanto o assunto é Compliance.
Outro ponto importante a ser comentado é que, para se ter sucesso na implementação de um programa de Compliance, é essencial que haja o total comprometimento da diretoria da entidade. Este é o principal pilar do programa. Mais do que os associados e colaboradores, os diretores e gestores devem adotar de corpo e alma a ideia, para que o programa se mostre efetivo.
A elaboração de um código de ética e conduta é o primeiro passo neste longo caminho. Estabelecer os pilares de uma cultura de boa governança passa pelos princípios adotados pela entidade, que devem ser compartilhados e seguidos por todos os membros da corporação. Sobretudo pelas camadas mais altas.
Além disso, é indispensável a criação de um canal de denúncias e irregularidades, e uma eficiente comunicação interna acerca dos princípios adotados no programa, para engajamento de toda a organização.
A depender do tamanho da entidade, é desejável que haja um departamento de Compliance, ou pelo menos um gestor responsável pela pasta, que deve responder diretamente à Assembleia Geral, para que tenha autonomia em suas ações e não fique sujeito à Diretoria Executiva em suas atribuições. Este profissional ou departamento deve ainda conhecer a fundo a entidade e sua atuação, a fim de implementar as ferramentas certas nos locais adequados, a fim de ser efetivo no combate às más práticas.
Necessário ainda a implementação de estratégias de monitoramento contínuo. Trata-se de uma ferramenta que deve ser implementada inicialmente, e perdurar na entidade por toda a sua “vida”, norteando suas ações em todos os segmentos e níveis.
A entidade deve ainda estimular e acolher denúncias sobre comportamentos que venham de encontro à ética organizacional, à moral, e às leis, sempre protegendo os denunciantes. Deve ainda apurar tais denúncias, coibindo a ocorrência de erros, fraudes, e principalmente a corrupção dentro da organização.
Por fim, é indispensável que existam profissionais de áreas como a contábil e jurídica com conhecimento no assunto para auxiliar na identificação, interpretação, e análise sobre a aplicabilidade dos diversos dispositivos legais que tenham impacto direto e indireto nas organizações do terceiro setor.