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Quando o Plantão Médico vira Reality Show

Afastar os médicos é “jogar pra galera”, é como flagrar a esposa com o vizinho no sofá, e resolver o problema vendendo o sofá.

 

No fim de semana, um vídeo gravado por um usuário da UPA de Passos (MG) mostrando consultórios vazios viralizou. Em poucas horas, vieram a indignação performática, a enxurrada de comentários — e a canetada: três médicos plantonistas foram afastados “preventivamente”. Tudo muito rápido, muito barulhento e, sobretudo, muito conveniente para a plateia digital.

A própria Prefeitura divulgou, depois, que havia três médicos de plantão: dois no intervalo regulamentar, e um no banheiro. Há registro interno de que o intervalo entre a saída do médico para o banheiro e a entrada do paciente que filmou foi de segundos. Ou seja: a imagem do consultório vazio não prova abandono; só captura um recorte de alguns segundos do plantão. E recortes, sabemos, viram narrativa quando encontram o político certo, com o celular na mão.

A Secretaria de Saúde também lembrou o óbvio que muita gente finge não conhecer: a UPA usa o Protocolo de Manchester — prioridade por gravidade, não por ordem de chegada — e chega a atender 570 pessoas por dia. Em cenários de alta demanda, a espera de casos não urgentes se alonga, chegando a 4 horas (o paciente em questão foi atendido em 23 minutos). Isso é fluxo, não negligência. Mas fluxo não rende like. Vídeo, sim.

Fiscalização de palco não é política pública

O secretário municipal de Saúde explicou: “Como teve esse barulho tão grande, para darmos transparência, decidimos pelo afastamento rápido desses profissionais.” Transparência?! A explicação não poderia ser mais absurda. Afastar médicos para “jogar pra galera”, é como flagrar a esposa com o vizinho no sofá, e resolver vendendo o sofá. A propósito, Sr. secretário: com o afastamento dos médicos, como fica o atendimento? Pior — e a conta recai no usuário.

“Transparência” virou desculpa para transformar serviço público em cenário. O resultado é sempre o mesmo: espetáculo primeiro, apuração depois (se houver). O prefeito grava vídeo indignado, anuncia afastamento sumário e promete “medidas”. O roteiro é conhecido: dá ibope, terceiriza culpas e reforça a fantasia de que problema de acesso se resolve com gritos na recepção e vídeos nas redes sociais. Enquanto isso, ninguém discute dimensionamento de equipe, escala noturna, segurança, reposição de insumos, comunicação com o usuário ou triagem qualificada. Porque isso não cabe em um Reels.

E, convenhamos, “consultório vazio” às 1h da manhã não é prova de omissão. Plantão não é reality show com câmera no ombro do médico. Intervalos existem, são legais, e devem ser organizados sem interromper o atendimento. Confundir revezamento com abandono é uma desonestidade confortável para quem precisa de manchete.

O preço de decidir para a plateia

Afastamentos midiáticos sem apuração técnica têm efeito colateral imediato: desmoralizam a equipe, contaminam a confiança do usuário e empurram bons profissionais para longe do SUS. Quem topa trabalhar em rede pública sabendo que, a qualquer momento, pode ser exposto, punido e julgado por um vídeo de 15 segundos tirando a realidade do contexto? É assim que se desorganiza um serviço: trocando governança por lacração.

Há ainda um problema jurídico e ético que ninguém comenta: gravações dentro de áreas assistenciais, sem controle, violam privacidade, ambiente de risco biológico e podem ferir deveres de sigilo e normas de proteção de dados. O poder público deveria coibir – não estimular – “vistorias” improvisadas com o celular.

Se é para “mostrar serviço”, Sr. Secretário de Saúde, mostre o que importa. Quer transparência? Faça o básico, e publique:

  • Relatório de fluxo por faixa horária (entradas, cores de Manchester, tempos de espera);
  • Escala e cobertura de plantão, com protocolo claro de revezamento para descanso;
  • Auditoria técnica do caso que viralizou (logs da triagem, horários, atendimento prestado);
  • Plano de ação para gargalos reais (reforço de equipe nos picos, retaguarda diagnóstica, segurança).

Tudo isso seria um claro sinal de gestão, e de política pública eficiente. O resto, Sr. Secretário, é palco.

O recado final

A Prefeitura de Passos deveria ter começado pela apuração e pela comunicação honesta com a população — e só então decidir sobre eventuais medidas disciplinares. Inverter a ordem e punir inocentes é ceder à tirania do algoritmo. E algoritmo não administra UPA, não atende paciente, não segura porta em madrugada cheia.

Chega de reality show com gente doente. O SUS pede respeito ao médico, gestão de verdade e cidadão bem informado — não inflamado. No dia em que trocarmos “vídeo indignado” por relatório, escala, protocolo e investimento, talvez os consultórios deixem de parecer vazios. Porque o que está faltando não é médico: é gestor que entrega (e não lacra) e político que governa (e não enrola).

 

Renato Assis é advogado há 19 anos, especialista em Direito Médico e Empresarial, professor e empresário. É conselheiro jurídico e científico da ANADEM. Seu escritório de advocacia atua em defesa de médicos em todo o país.

renato@renatoassis.com.br

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