Por: Renato Assis
A Lei 12.846/2013, em vigor desde 29 de Janeiro de 2014, também conhecida como Lei Anticorrupção, veio ao nosso ordenamento jurídico em um momento de grandes mudanças, visando, sobretudo, a conscientização da nossa sociedade, para que não continuemos convivendo em meio a toda a corrupção que assola o país de norte a sul e que causam a maior parte de nossas mazelas, cuidando também para que possamos evitar a propagação deste mal.
Atualmente o Brasil ocupa a 75ª posição no ranking mundial de corrupção percebida, sendo que o custo médio anual suportado por nossos cofres em razão disto é de cerca de 41,5 bilhões de reais, uma triste realidade. Ainda sim, por outro lado, nos últimos anos temos assistido a uma onda de conscientização geral da sociedade, assim como ao fortalecimento das instituições de controle e combate à corrupção e ao crime organizado. Desnecessário falar sobre o papel do Ministério Público e da Polícia Federal neste sentido, além de parte do Poder Judiciário. Verifica-se ainda, que a atuação em prol da ética e lisura tem sido gerais. Podemos citar como exemplo a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que somente nos últimos 3 (três) anos apresentou 2 (dois) pedidos de Impeachment (Dilma e Temer), sendo que nos 86 (oitenta e seis) anos anteriores, somente um pedido havia sido feito. Verifica-se, pois, que toda a sociedade tem vestido a camisa na luta contra a corrupção e as más práticas na administração pública.
Regulamentada pelo Decreto 8.420/2015, a Lei Anticorrupção estabelece que fundações, associações e empresas, respondam civil e administrativamente sempre que a ação de um membro de seus quadros causarem prejuízos ao patrimônio público, ou infringir princípios da administração pública. Uma das grandes inovações desta lei é a aplicação da responsabilidade objetiva, que desconsidera a necessidade de dolo ou culpa por parte do agente, para aplicação das sanções e penalidades previstas.
Segundo pesquisa conduzida pela ICTS, após quase 5 anos de vigência da Lei Anticorrupção, 46,9% das empresas brasileiras admite que não estão preparadas para cumpri-la. Contudo, um percentual muito maior, 76,9%, confia que a lei será cumprida. Ou seja, o que se denota destes números é que grande parte das empresas (e pessoas), por mais que acreditem na efetividade da lei, ainda desconhecem seus pormenores, assim como as formas de se adequar a essa nova realidade. Navegam em águas desconhecidas, estando em risco de sérios problemas, de difícil solução.
O desconhecimento das determinações desta lei é um grande risco para as empresas e corporações. Em rápida análise, podemos constatar que os efeitos da aplicação da lei podem ser desastrosos, visto que a mesma prevê, por exemplo, aplicação de multa administrativa de até 20% (vinte por cento) do faturamento bruto anual da empresa (caso o valor não seja mensurado, o limite da multa é de R$ 60 milhões). Prevê ainda a responsabilidade dos gestores na modalidade objetiva, ou seja, independente de culpa ou dolo do agente, o gestor pode responder pessoalmente sobre o ato causador de dano ao agente público.
É neste sentido que pela ótica da Lei Anticorrupção, as empresas que desejarem estar em conformidade devem implementar um Programa de Compliance, ressaltando que um programa de Compliance “de mentira” é sinônimo de corrupção, ou seja, ele deve ser efetivo, blindando a empresa contra riscos internos e externos. Para tanto, é fundamental uma visão crítica e isenta que entenda as necessidades, e o que melhor se adequa à realidade da empresa e das suas relações.
O termo “Compliance” tem sua origem no verbo do idioma inglês “to comply”, que significa estar em conformidade; de acordo com as regras. No âmbito corporativo, podemos definir Compliance como um conjunto de regras existentes para que se faça cumprir as normas legais e regulamentares, as políticas e diretrizes determinadas para o negócio e para as atividades da empresa, evitando, detectando e combatendo qualquer tipo de irregularidade ou desvio que possa ocorrer. Em suma, podemos dizer que os princípios do programa não visam somente seguir a norma, mas sim os princípios morais, e assim, o tema transcende a letra da lei.
Na área da saúde, o Compliance é uma blindagem que envolve uma série de matérias do direito, como a civil, a penal, o direito regulatório, o direito tributário, e outras mais a depender da área de atuação da corporação ou empresa. Uma vez que se delimitam as regras de conduta do fornecedor, colocam-se padrões que devem ser cumpridos por estes, vinculados a penalidades, que se bem reguladas, podem ser um grande adicional de controle dos fornecedores, e que podem ser somadas às penalidades decorrentes da violação das leis.
Embora este novo paradigma esteja presente nas relações de todas as áreas, certas searas carecem de mais cuidado e engajamento do que outras, e a principal delas certamente é o setor de saúde. Isto porque, é impossível imaginar um local em que mais se deseje assegurar a transparência e a ética do que onde se cuida da saúde e da vida.
Cumpre ressaltar que na área da Saúde, já tivemos um sinal anterior à Lei Anticorrupção e à onda do Compliance: O Acordo Setorial de Ética e Saúde, ajuste onde estão regulamentadas desde práticas técnicas, até práticas costumeiras, como remunerações por palestras, patrocínios de eventos e concessão de brindes, entre outros.
Verifica-se, pois, que sempre houve uma preocupação com alguns princípios inerentes à área, como o respeito pelas boas práticas da medicina, pelos princípios médicos, e a integridade e o respeito na relação médico-paciente, que devem nortear não só as relações diretas entre estas duas partes, como também as relações das grandes empresas no trato com os pacientes, com profissionais da saúde e com o poder público.
No Brasil, o setor público hospitalar movimenta cifras astronômicas em termos de investimento em estrutura (ainda que mal aproveitado), contratações, compras e diversos outros. A saúde responde atualmente por 9.3% do PIB do Brasil (470 bilhões). Deste total, 48,2% é investimento é público.
Infelizmente, as cifras da corrupção também são grandiosas e assustadoras. Somente em um esquema no estado do Rio de Janeiro em 2017, o prejuízo foi de 147 milhões, com pagamento de propina de 10% (dez por cento) em todos os contratos da Saúde. Esquema que contou com a participação do governador do Estado, e foi desmantelado pela Operação Fratura Exposta.
O setor privado também representa um volume grandioso, porém menos acessível à corrupção, por ser administrado em regra “pelo dono”, ao contrário do setor público.
Além disso, até o final de 2014 havia uma restrição bastante severa sobre investimentos estrangeiros na área hospitalar privada, motivo pelo qual o mercado brasileiro acabou fragmentado, contando com muitas clínicas e hospitais locais. Com a recente entrada do capital estrangeiro, se formaram grupos mais economicamente consolidados entre as instituições de saúde, que trouxeram consigo a cultura de um programa de Compliance de gestão corporativa mais estruturado, impactando no mercado nacional e criando uma nova cultura no segmento da saúde.
Mesmo em meio às diferenças existentes entre os âmbitos público e privado, existem duas questões importantes quando o assunto é Compliance: A necessária e obrigatória regulamentação tratada pela Lei Anticorrupção em relação ao setor público, e a busca por parte das empresas privadas da comprovação de que estão de acordo com as diretrizes legais, o que serve como atestado positivo para a empresa.
Conforme sustentado, é fato inconteste que a corrupção assola a todo o País nas mais diversas áreas, mas a área da saúde sempre será a que gera os prejuízos mais graves à sociedade. Aquela que no passado foi uma área com áurea de lisura e ética, vem sendo bombardeada pela podridão da corrupção. Tanto que o nosso Ministério da Saúde tem sido chamado de Ministério da Doença.
É importante ainda ressaltar que o problema é global, não se restringindo ao Brasil. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), entre 20% e 40% do gasto em saúde é desperdiçado com ineficiência. Nos EUA, 30% do investimento do ano de 2009 foi gasto em serviços desnecessários, e 10% em fraudes, segundo o Institute of Medicine. Constata-se que naquele país, a “perda” com serviços desnecessários é 3 vezes maior do que a com fraudes.
Contudo, o “diferencial” do Brasil é que além do desperdício (peculiar à área da Saúde em quase todo o mundo), contamos com uma corrupção avassaladora. São constantes as denúncias de irregularidades, as queixas por parte dos usuários do sistema de saúde, e os processos em busca do acesso à saúde e da reparação por danos sofridos. Desvios de verbas, favorecimento de empresas, pagamento de comissões por indicação de medicamentos e tratamentos, máfias diversas (como a das próteses), estruturas milionárias abandonadas, limitação leonina de exames por parte dos planos de saúde, etc, o que colabora para deixar nosso sistema de saúde ainda mais precária e ineficiente.
Em meio a este ambiente mórbido, a confiança da sociedade no setor da saúde, que já foi concreta, chegou ao fundo do poço, sendo que o único caminho para reestabelecer a confiança no setor é promover uma mudança radical nas relações da saúde, implementando nos setores público e privado a cultura trazida pelas grandes corporações estrangeiras, atuando preventivamente e pro-ativamente em função das boas práticas e da ética, provando a idoneidade e caçando a corrupção.
Para que se alcance este novo paradigma, é indispensável a aplicação do Compliance na área da saúde, mesmo sendo esta uma das áreas mais complexas para se implantar o programa, por se tratar de uma atividade com altíssimo nível de especialidades, técnicas e procedimentos a serem irrestritamente seguidos, cercada também por diversas contradições e dilemas, principalmente éticos, que é o que passamos a abordar.
Embora se preconize na área da saúde o foco central no paciente, orbitam nesta equação diversos núcleos que formam a chamada Cadeia de Saúde (médicos, outros profissionais, hospitais e clínicas, laboratórios, distribuidores, fabricantes, importadores, operadoras de saúde, etc).
Neste contexto, existe no setor da saúde uma série de relações complexas, impulsionadas por interesses diversos, que nem sempre priorizam o bem-estar do paciente. Podemos citar ainda diversos fatores externos que exercem forte influência sobre a atividade, tais como políticas públicas, relações exteriores, inovações tecnológicas, epidemias, economia do País, etc.
Neste sentido, o melhor exemplo que temos acerca dessa divergência de interesses, é a análise da correlação entre os principais agentes:
Paciente: Quem usa, não escolhe nem decide.
Prestador: Quem decide, não paga nem usa.
Operadora: Quem paga, não usa nem decide.
Este esquema deixa claro que, sem as devidas políticas de fiscalização, controle e combate à corrupção e aos interesses privados, a própria natureza do sistema se opõe ao seu regular funcionamento.
Percebe-se, pois, a complexidade do tema, e patente se mostra a necessidade de um planejamento eficiente e qualificado para implantação do programa de Compliance, com o engajamento total tanto de sua equipe de colaboradores, quanto de terceiros envolvidos em todas as camadas.
Com implantação de programas de Compliance em todos os setores, será possível a qualquer empresa ou corporação deter total rigor na hora da escolha e contratação de seus fornecedores. Contudo, o Compliance na saúde é mais complexo e profundo, sendo necessário pensar além da obediência a regulamentações, definindo com assertividade até onde vão as políticas internas da empresa, e se estas são suficientes para garantir a segurança da instituição. Como consequência, teremos uma maior segurança aos pacientes.
Verifica-se que o grande ponto de interesse do tema são as pessoas e seus interesses. Embora muito se ventile acerca das fraudes digitais, é incontroverso que a fraude ocorre por falta de gestão interna. Um dado que é reforçado pelo estudo que aponta que 47% dos fraudadores não utiliza tecnologia. Contudo, são as empresas de tecnologia que criam muitas das soluções de controle com a finalidade de evitar situações desastrosas, como por exemplo acesso e captura de dados de clientes.
Para que possamos criar mecanismos eficientes contra as fraudes, precisamos antes entender acerca da natureza destas, e o estudo do Triângulo da Fraude de Cressey nos auxilia neste sentido. Para se chegar a este teorema, o Ph.D. Donald R. Cressey entrevistou no ano de 1950 nada menos que 250 criminosos, que foram presos por aceitarem cargo de confiança, e violarem a confiança que lhes foi depositada. Os dados obtidos possibilitaram concluir que existem 3 (três) fatores para a violação de confiança: Pressão (ou incentivo), oportunidade e racionalização.
Trazendo para a realidade atual percebemos que, para que tenhamos um ambiente propício a fraudes, só se depende de que tenhamos:
- Uma pessoa com necessidades financeiras;
- Investida de uma confiança que, caso quebrada, resolva a referida necessidade;
- Que o indivíduo racionalize, de forma que justifique para si sua conduta como não sendo errada.
Ora, notamos que na atual conjuntura, estas condições existem no ambiente de qualquer corporação. Daí a necessidade de um adequado Programa de Integridade nas empresas, sobretudo nas privadas.
O Decreto no 8.420/2015 definiu no seu art. 41 o que é Programa de Integridade:
“Programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de éti- ca e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira.”
Verifica-se, pois, que o Programa de Integridade é muito mais do que um código de conduta, pois engloba em si todo o processo de Compliance da empresa. É o primeiro passo para as empresas que desejam a tão sonhada conformidade, que é construída sobre a base de 5 (cinco) pilares:
- Comprometimento e apoio da alta direção;
- Instância responsável pelo programa de integridade;
- Análises de perfil e riscos;
- Estruturação das regras e instrumentos;
- Estratégias de monitoramento contínuo.
Com base nos pilares acima, temos um bom caminho inicial para a construção do Programa de Integridade, lembrando que não existe uma fórmula pronta e acabada para tal medida, cada empresa deve elaborar seu programa de acordo com a sua realidade.
Assim, a estrutura básica de um Programa de Compliance passa por diversos pontos, estando estes subdivididos entre 3 (três) momentos ou etapas, quais sejam:
- Prevenção: Avaliação de riscos, elaboração de código de ética, criação de controles internos, treinamento e comunicação, etc.
- Ação: Monitoramento, Investigações internas e externas, etc.
- Detecção: Duo dilligence, canais de denúncia, etc.
Os elementos mais comuns para a construção do Programa de Integridade são os abaixo descritos, devendo todos ser devidamente ponderados dentro do Compliance na Saúde:
- Elaborar e instituir um código de ética;
- Estabelecer os procedimentos de controle necessários,
- Envolver no programa toda a direção da empresa;
- Instituir políticas internas para seleção de fornecedores;
- Treinar a equipe periodicamente;
- Avaliar o risco da relação fornecedor-cliente;
- Ter um responsável autônomo para aplicação do programa;
- Instituir meios de monitoramento para o responsável;
- Criar canais de denúncia;
- Determinar medidas disciplinares;
- Inspecionar a adequação dos fornecedores.
Um ponto importante a ser destacado é que se faz indispensável o engajamento da diretoria da organização, sob pena do fracasso do programa. A cultura deve partir das camadas mais altas da organização, para que seja assimilada pelas demais. A seleção ideal e criteriosa de fornecedores e parceiros também é primordial, pois alianças com empresas idôneas e comprometidas com as boas práticas fecha muitas portas à corrupção. E não menos importante, um monitoramento contínuo é essencial para que se mantenha a cultura de lisura.
Outro ponto importante diz respeito à implantação das políticas, que variam de um caráter mais genérico frente ao tema Compliance, a um caráter mais específico frente às especificidades da atividade da empresa. Abaixo alguns exemplos de políticas a serem estabelecidas:
- Política do programa de ética e Compliance;
- Política de prevenção à corrupção;
- Política de prevenção a potenciais conflitos de interesses;
- Manual de Compliance com Fornecedores;
- Política de proteção a dados;
- Política de auditoria e controles internos.
Uma vez instituído o Programa de Compliance, a organização passa a gozar de uma séria de benefícios, que servirão como mola propulsora para sua consolidação no mercado, livre dos riscos inerentes às demais empresas.
Abaixo estão listados alguns dos benefícios às empresas que instituem o programa:
- Aderência às leis, normas e regulamentações;
- Redução de custos causados por redundância nos controles internos;
- Promoção da transparência interna e externa;
- Proteção da Imagem da empresa e de sua equipe;
- Aumento da competitividade no mercado;
- Controle de riscos que impactam diretamente nos resultados;
- Mitigação de penalidades eventualmente aplicadas, caso algo ocorra em que pese a existência do programa de Compliance.
Assim, podemos concluir afirmando que, com base em todo o conteúdo aqui abordado, qualquer empresa que atue na área da saúde e que pretenda garantir seu lugar no futuro, deve iniciar desde já o planejamento para implantação de um eficiente Programa de Compliance.