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Os Impactos do PLP 143/2024 no Associativismo Brasileiro

Na última semana, foi publicada a Nota Técnica 5.253/2024 pela Consultoria Legislativa do Senado Federal, que rejeitou parcialmente o conteúdo do PLP 143/2024, apresentando uma abordagem crítica que reflete preocupações legítimas, e precisam ser analisadas com atenção. O documento aponta inconsistências relacionadas à técnica legislativa (classificada como “sofrível”) e evidencia a inconstitucionalidade de diversos pontos da proposição, ao mesmo tempo em que apresenta emendas visando ao aperfeiçoamento da matéria.

A Nota Técnica reflete, no Senado Federal, a preocupação amplamente manifestada pela sociedade nas ruas, sobretudo em relação à proposta do PLP de submeter a Proteção Veicular à supervisão da SUSEP através de uma preocupante ampliação dos poderes da autarquia, gerando a perspectiva de grande insegurança jurídica a todo o mercado. Além disso, o documento critica o fato de o projeto alterar regras sobre o processo administrativo sancionador, impactando não apenas as entidades de Proteção Veicular, mas também as seguradoras. (PLP 143/2024)

Principais Pontos de Inconstitucionalidade

A Nota Técnica destaca uma série de inconstitucionalidades formais, apontando vícios de iniciativa legislativa, como:

  • Ampliação das competências da SUSEP;
  • Supervisão das associações de Proteção Veicular por parte da SUSEP;
  • Criação de cargos e funções comissionadas na SUSEP;
  • Conferência de poderes ao CNSP, órgão do Poder Executivo;
  • Atribuição de competência legislativa à União Federal.

Apesar de reconhecer a necessidade de regulamentação da atividade, o documento critica duramente o modelo proposto, alertando para o risco de colapso do mercado. A análise expõe que os pequenos grupos mutualistas, desproporcionalmente afetados pelos custos regulatórios e taxas de fiscalização, dificilmente competirão com os grandes grupos empresariais.  

Principais Pontos de Inconstitucionalidade

A assessoria do Senado foi perspicaz em enxergar que a concentração das atribuições regulatórias e sancionadoras na SUSEP irá comprometer a essência do modelo associativo, que poderá ser eliminado, restando apenas entidades que adotem um modelo essencialmente mercantil e empresário (outrora criticados pela própria SUSEP, eis que desvirtuados de sua natureza jurídica). O modelo proposto contraria totalmente os princípios e contornos jurídicos da atividade associativa, e indica que a regulamentação pode não passar de uma estratégia de reserva de mercado e eliminação da concorrência, às custas do interesse social de milhares de brasileiros.

Outro ponto preocupante é a delegação de questões fundamentais para regulamentação posterior pelo CNSP, de forma unilateral e sem a indispensável análise e discussão pelos representantes da sociedade no Congresso Nacional. Essa abordagem gera incerteza para o mercado e compromete a segurança jurídica.

Leis devem proporcionar estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica. Este projeto, da forma que foi estruturado, caminha em sentido oposto. Diante disso, cabe questionar: a regulamentação da atividade outorgando a supervisão à SUSEP é mesmo o melhor caminho para a sociedade? A resposta parece apontar para um total contrassenso.

Diferenças entre Proteção Veicular e Seguro Empresarial

O conteúdo da Nota Técnica reconhece as gritantes diferenças entre as atividades de Socorro Mútuo e o Seguro Empresarial, conforme trecho abaixo, reforçando este entendimento:

Há diferenças importantes entre a proteção veicular e o contrato de seguro. No contrato de seguro, há transferência do risco do segurado para a seguradora. Na proteção veicular, o associado obriga-se a dividir o risco de eventual dano com os outros associados. (PLP 143/2024)

 No contrato de seguro, o prêmio pago é fixo. Na proteção veicular, divide-se o valor dos prejuízos apurados entre os associados. Além disso, as seguradoras são fiscalizadas pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), com a imposição de reservas técnicas para pagamento das indenizações. No caso da proteção veicular, o pagamento das indenizações se dá mediante rateio entre os associados.

A incoerência do projeto é evidente: ele reconhece que a atividade associativista não é seguro, mas a submete à regulação da SUSEP, desrespeitando a autonomia constitucional das associações e ampliando as competências da SUSEP para além do mercado securitário.

Além disso, basta recordar que em seu combate à atividade nos últimos 15 anos, a SUSEP sempre foi grande crítica da adoção do modelo empresarial por algumas associações, por objetivarem o lucro e desvirtuar o modelo associativo. Contudo, o modelo regulatório proposto com o apoio da autarquia privilegia somente as estruturas empresariais e mercantis, em um modelo que neutraliza totalmente o associativismo. O que se percebe é um cenário preocupante, sobretudo porque o caráter associativista e suas proteções constitucionais foram o grande calcanhar de Aquiles da SUSEP no frustrado e ineficiente combate à atividade de Socorro Mútuo, que só cresceu e se desenvolveu nas últimas décadas.

Posicionamentos de Autoridades do Judiciário

As duras críticas feitas pela consultoria do Senado Federal coadunam com o discurso de autoridades do Poder Judiciário, externadas no dia 04/10/2024 no evento ocorrido na OAB/MG. Segundo Nunes Marques, ministro do STF, o projeto de lei não pode limitar os direitos e garantias constitucionalmente garantidos ao associativismo, sob pena de se mostrar constitucionalmente frágil.

Já o ministro Noronha, do STJ, afirmou que novo modelo não pode constituir barreiras de entrada, diminuindo o acesso à população (algo claro no modelo sugerido pelo projeto). Disse ainda que o projeto deve melhorar a eficiência e diminuir o custo à população (o oposto do que é proposto no projeto). Por fim, o ministro Afrânio Vilela, também do STJ, alertou que o projeto representaria uma invasão à competência da revisão do Código Civil.

Outras Violações Jurídicas Evidenciadas

O conteúdo da Nota Técnica, sob certa perspectiva, pode ser considerado modesto, pois deixou de explorar uma série de outras violações legais presentes no texto do projeto de lei. Abaixo, destacam-se algumas dessas violações que merecem atenção:

A) Cerceamento da Autonomia e Liberdade Associativa

O projeto restringe a autonomia das associações ao submeter sua existência e funcionamento a condições impostas unilateralmente pela SUSEP e pelo CNSP. Essa medida viola a natureza voluntária e autônoma das associações, representando uma grave interferência na liberdade associativa, garantida pelo artigo 5º, XVII, da Constituição Federal. (PLP 143/2024)

B) Insegurança Jurídica e Poder Regulamentar Amplo

O projeto viola o princípio da legalidade estrita, ao permitir que aspectos essenciais das operações associativistas sejam regulamentados por atos administrativos posteriores à lei, sem especificar critérios ou limites claros. Essa regulamentação ampla e discricionária gera insegurança jurídica, comprometendo a previsibilidade das normas.

C) Limitação da Liberdade Econômica e do acesso à Proteção Patrimonial

O projeto marginaliza os indivíduos que dependem das associações por não terem acesso ao mercado de seguros empresariais. Ao impor um modelo burocrático, elitista, rígido e oneroso, prejudica a liberdade econômica das pessoas excluídas do mercado securitário. Isso elimina o acesso coletivo e popular aos mecanismos de proteção patrimonial atualmente existentes, ferindo o direito de optar por formas alternativas de proteção mais acessíveis. Além disso, a imposição de condições típicas do mercado securitário empresarial restringe a operação livre, simplificada e lícita das associações, conforme previsto pela Constituição. (PLP 143/2024)

D) Excessiva Intervenção Estatal

O projeto viola o princípio da subsidiariedade ao retirar a autonomia das entidades associativas, subordinando-as a terceiros como empresas administradoras, bem como à indevida regulação do CNSP e da SUSEP, que terão amplos poderes de supervisão, incluindo afastamento de diretores, liquidação extrajudicial e gestão financeira das entidades, o que desfigura o caráter voluntário do associativismo.

E) Comprometimento da Natureza Associativa

A proposta impõe às associações uma estrutura empresarial de cunho securitário, desvirtuando a natureza jurídica de entidades que operam com base na confiança mútua entre seus integrantes. Ao exigir a criação de Grupos de Proteção com CNPJ próprio e sua submissão a empresas administradoras, o projeto compromete a essência associativa. Essa medida fere o princípio da solidariedade e da autonomia, prejudicando o direito coletivo de organizar soluções simples e acessíveis para necessidades específicas. Alem disso, a equiparação da Proteção Veicular aos seguros empresariais desrespeita a natureza jurídica das operações de socorro mútuo, regidas pelo Código Civil.

F) Prejuízos aos Direitos dos Consumidores

O modelo de socorro mútuo, que atualmente é a única opção de proteção patrimonial a milhares de consumidores, pode ser seriamente comprometido com a implementação do projeto. Isso prejudica a adequação dos serviços às necessidades e expectativas dos consumidores mutualistas, ferindo o artigo 5º, XXXII, da Constituição Federal, que garante a defesa do consumidor.

G) Concentração e Monopólio no Setor

O projeto viola o direito coletivo à diversidade e pluralidade de opções no mercado, ao submeter as entidades de proteção patrimonial não securitárias à SUSEP. Promove a concentração de mercado eliminando a concorrência, e cria barreiras de entrada (ou de existência) para associações tradicionais, favorecendo grandes corporações e eliminando a diversidade de opções no mercado. Tal medida enfraquece o poder decisório dos associados e reduz a competitividade.

H) Imposição de Custos que Inviabilizam a Atividade

O projeto cria novas taxas de fiscalização e autorizações, além de impor tributação equivalente à das Seguradoras Empresariais, custos que seriam repassados aos beneficiários por meio das contribuições, inviabilizando a operação e penalizando os associados com custos operacionais descabidos para a atividade, restringindo o direito de acesso econômico a serviços de proteção patrimonial.

I) Redução da Participação e Autonomia dos Associados

Os dispositivos do projeto subordinam os interesses das associações aos Grupos de Proteção Patrimonial e às empresas administradoras. Essa subordinação fere o direito individual de autodeterminação e gestão participativa, retirando dos associados o controle sobre as operações mutualistas, que é uma característica central das associações de socorro mútuo.

Essas violações, somadas às já expostas na Nota Técnica, deixam claro que o projeto, caso aprovado em sua forma atual, pode resultar em prejuízos imensuráveis para a sociedade, especialmente para a população mais carente.

Recomendações

Para que o projeto atenda de maneira adequada às necessidades da sociedade e seja minimamente viável, é essencial considerar as seguintes medidas:

  1. Consulta Pública Ampla e Representativa

Promover uma consulta pública que envolva todos os segmentos relacionados ao setor mutualista, incluindo associações, consumidores, representantes do mercado mutualista e especialistas jurídicos do setor, de maneira democrática e abrangente. Essa medida garantirá transparência e alinhamento com os interesses da sociedade, além de evitar proposições unilaterais e distantes da realidade.

  1. Separação Estrita entre Modelos Associativo e Securitário

Respeitar os contornos jurídicos do modelo associativo, distinguindo-o completamente do mercado securitário. Essa separação deve preservar o caráter associativo e autônomo das entidades, evitando que elas sejam forçadas a adotar práticas incompatíveis com sua essência.

  1. Escalonamento Regulatório

Adotar um modelo regulatório progressivo, com exigências proporcionais ao porte das associações e cooperativas. Isso permitirá que entidades menores tenham um período de adaptação razoável, reduzindo impactos financeiros desproporcionais e promovendo um ambiente regulatório inclusivo.

  1. Revisão dos Poderes da SUSEP e CNSP

Estabelecer limites claros aos poderes discricionários atribuídos à SUSEP e ao CNSP, especificando critérios objetivos e transparentes para regulamentação e fiscalização. Isso garantirá que a supervisão não comprometa a autonomia das associações mutualistas e minimize riscos de arbitrariedade.

  1. Preservação da Autonomia Associativa

Assegurar que as associações mantenham o controle sobre suas operações, sem serem subordinadas a empresas administradoras externas. Essa medida respeita o princípio constitucional de liberdade associativa e protege a essência colaborativa das entidades mutualistas.

  1. Ampliação do Prazo de Adequação

Ampliar o prazo de 180 dias para pelo menos dois anos, permitindo que associações e cooperativas realizem as mudanças necessárias sem comprometer sua sustentabilidade financeira. Um período de transição mais longo é essencial para garantir a adaptação adequada ao novo modelo regulatório.

  1. Eliminação de Barreiras de Entrada

Reduzir custos regulatórios e operacionais impostos às associações, como taxas de fiscalização e requisitos empresariais e securitários complexos. Essa medida evitará a concentração de mercado nas mãos de grandes corporações, promovendo maior diversidade e acessibilidade para entidades de pequeno porte.

  1. Definição Prévia dos Requisitos Técnicos e Operacionais

Incluir no texto legislativo critérios claros e objetivos para a operação das associações mutualistas. Isso evitará que pontos cruciais sejam deixados para regulamentação posterior por atos administrativos, garantindo maior segurança jurídica e previsibilidade para todos os envolvidos.

Essas recomendações, caso implementadas, podem resultar em um modelo que realmente seja aderente e beneficie a sociedade, permitindo que o projeto evolua de forma equilibrada e, principalmente, seja aprovado não apenas no Congresso Nacional, mas também pela sociedade. Dessa forma, evita-se a criação de mais uma lei que existe apenas no papel, sem adesão ou impacto positivo real.

Conclusão: Por Um Modelo Mais Democrático e Justo

O avanço do PLP 143/2024 até o Senado Federal revelou a força do lobby do mercado securitário, mas a rejeição pela consultoria do Senado Federal representa um alerta, e também uma oportunidade.

Com o possível retorno do projeto à Câmara dos Deputados (caso não seja aprovado sem emendas em votação que ocorre no dia 27/11/2024), pode haver espaço para a proposição de novos ajustes que tornem o modelo mais democrático e alinhado aos interesses da sociedade. Para isso, é imprescindível que o mercado associativista se organize, proponha mudanças e exija que sejam consideradas as reais necessidades do setor.

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